Segunda-feira, Maio 15, 2006

A chuva nos ruídos

É preciso conhecer a poesia da Vera Lúcia de Oliveira. Eu fiquei pasmo quando descobri que essa poeta morou em Assis. Eu mesmo morei lá em uma época de minha vida. Dizem que não devemos dizer a palavra “jamais” em vão, entretanto, quando de lá me fui, prometi a mim mesmo que jamais voltaria a ver aquele lugar. Agora Assis de novo. Pelas palavras dessa poeta da secura, das palavras densas e ásperas, feitas pedras:

ave em carne viva
ave em tumulto
ave no osso
ave no uso
asa gravada
no sangue

ave na pressa
ave em vôo convulso
pronta
pra qualquer
fresta
ave torta
e ávida
em revoada
provisória

Os jogos sonoros dos últimos versos são lindos. Aves ávidas: nós pobres humanos provisórios. Encanta-me nessa poeta a paixão pelo cerne, pelo âmago, pelo secreto de dentro. Voar em direção ao próprio íntimo é tarefa crua, nua, é rasgar-se em labaredas. E Vera não tem medo. Sempre diz sim à vida, por mais que ela seja feita de cicatrizes e feridas. Vejam que belo poema:

APRENDO

aprendo do girassol
o revés da carne ardente
o fundo do seu sangue agreste
na manhã de cal

aprendo por vício de virar do
avesso o ventre
de palpar a vértebra
onde palpita a voracidade
do ser em oscilação

Como dizia a Hilda Hilst, o bom poema tem de ser um soco no estômago. Acho que a Vera tem a mão certeira de quem sabe nos atingir no âmago da vértebra. E olhem! As aliterações em v. Mestria de quem conhece a língua portuguesa também por dentro, pelo íntimo.
Amigos o livro dela saiu editado pela excelente editora Escrituras. Chama-se “A chuva nos ruídos”. Aliás, a Escrituras está completando dez anos de excelentes publicações. Para acabar com esse papo, vejam o que o único Nobel da língua de Camões afirmou sobre ela:

“Não sei que influências recebeu, não sou capaz de identificar ecos de outras vozes na sua voz própria, e confesso que recebo destes poemas um som de autenticidade surpreendente.”
José Saramago

Acho que encontrei só uma poeta que me faz lembrar dela. A fabulosa Lara de Lemos.