Se
você entrar num site de busca, e procurar por "Vera
Lúcia de Oliveira", encontrará mais endereços italianos
que brasileiros. A poetisa, nascida em Cândido
Mota, interior de São Paulo, hoje, é professora de
literatura na Itália, onde mora.
Vera
Lúcia incorporou a língua italiana. Seus versos nascem
ora em italiano, ora em bom português brasileiro. Fiel
aos dois lados, sempre traduz os versos para um ou para
o outro idioma. Mas, a intimidade com o país em que mora
se tornou tão grande que a autora já conquistou prêmios
italianos de poesia como Prêmio Nacional de Poesia de
Senigallia e Prêmio Nacional de Poesia Gino Perrone.
Nesta
entrevista, a professora de literatura fala sobre a
estreita relação que possui com o idioma italiano e como
essa afinidade influencia na sua produção.
Até
que ponto as experiências vividas na infância
encontram-se hoje presentes em seus poemas?
As
primeiras imagens que guardei foram de Assis, cidade do
interior paulista, onde a família se fixou, em 1963.
Lembro-me nitidamente de um pé de maracujá, que tínhamos
no quintal, suas folhas verdes, suas flores intensas,
que pareciam bocas, ou olhos, e abelhas no seu
barulhinho de viver, um céu azul, um vento macio e
quente. Acho que foi a primeira epifania, a revelação da
vida, de uma capacidade de sentir e de saber o que
estava sentindo.
Tudo
isso brotou de uma concreção de coisas acontecendo, de
uma visão e de um contato físico com o que estava ao
redor. Parece que nasci de fora para dentro, que foi a
vida que me acordou para vivê-la e vê-la. Depois, me
descobri.
A
poesia entrou assim, dessa revelação. Já estava dentro
quando comecei a pensar em pôr no papel alguma coisa.
Não comecei escrevendo versos. Escrevia um diário,
pequenas estórias que ia inventando, de animais,
crianças... Lia muito.
Em
que momento surgiu o
elo com
a literatura? Você
sempre foi uma pessoa interessada por este campo de
conhecimento?
Amava
a literatura de maneira visceral. Comecei lendo tudo de
José de Alencar, passando posteriormente para outros
escritores da literatura brasileira, como Machado de
Assis, Graciliano Ramos, Érico Veríssimo e tantos
outros, até o grande encontro com Guimarães Rosa.
Não tardei em descobrir a literatura portuguesa, a
francesa, a norte-americana, a russa, sobretudo Tolstoi,
Checkov e Dostoievski, escritores que me marcaram
profundamente. Amava conhecer também a história dos
povos, costumes e tradições, a arte e a filosofia que
caracterizavam os vários períodos da civilização.
O
encontro com a poesia deu-se mais tarde, penso que foi
devido ao tipo de enfoque literário característico das
nossas escolas, que dedicam pouco espaço à poesia. Uma
professora me disse, certa vez, que poesia era a mais
complexa das artes e que era necessário conhecer muito
bem toda a métrica para compor um poema. Isso me levou a
esconder os meus versos e me distanciou da poesia por
vários anos. Não me sentia preparada para esta arte.
Quando
e
como surgiu
o interesse pela
Itália?
Prestei
o vestibular na Faculdade de Ciências e Letras da UNESP
-Campus de Assis, foi ali que comecei a estudar
italiano. Me apaixonei pelo idioma. Acalentava o sonho
de conhecer a Itália, sonhava com aquele país. Quando
terminei o curso, soube que o Instituto Italiano de
Cultura daria dez bolsas de estudo. Participei da
seleção e obtive uma delas. Aí começou uma nova
aventura. Estudei, viajei, conheci o que seria o meu
futuro marido, Claudio Maccherani. Fiquei um período
entre o Brasil e a Itália, na maior laceração e dúvida.
Depois, como não dava para ficar com um pé aqui outro
lá, escolhi a Europa.
No
entanto, embora seja neta de italianos, acho que meu
interesse por essa língua tenha origem no grande amor
pela poesia de Ungaretti. Descobri este poeta na
Faculdade de Letras. A gente tem desses encontros na
vida. Foi uma outra epifania. De repente, vi realmente o
que era poesia. É claro que tive também outros encontros
poéticos de grande relevância, como com Bandeira,
Drummond, Pessoa, mas com Ungaretti o encontro foi
também com a língua, o instrumento de poesia que ele
utilizava.
Quais
as diferenças e
semelhanças que você vê entre a língua portuguesa e
italiana?
Em
poesia, o poema é vivido na língua em que é escrito.
Essa emoção intensa, quando o poema é em italiano, eu a
vivo também em italiano. Da mesma forma, quando é em
português. Não é possível sentir profundamente algo numa
língua e depois exprimi-lo em outra, não com a poesia. A
racionalização da prosa permite isso. Por isso, uso mais
o italiano na prosa e o português em poesia. Foi assim
até hoje.
Português
é muito mais afetivo do que italiano. Já no século XV,
esse valor foi sublinhado por um rei lusitano, D.
Duarte, no livro Leal Conselheiro. Esse rei, que
era também um grande humanista, percebeu a riqueza do
português para exprimir certos estados de alma, certos
sentimentos, como a saudade, ele foi o primeiro a
defini-la. Essa palavra não tem tradução em outras
línguas porque nem todos os povos têm os mesmos tipos de
sentimentos. Uma língua é sempre um universo muito
complexo, é um modo de ver e interpretar o mundo. É uma
perspectiva.
Sobre
seu livro Pedaços/Pezzi, de 1992, José Saramago
afirmou não ser capaz de identificar ecos de outras
vozes na sua. Como você encara este comentário? Sua
poesia realmente não conta com influências de outros
autores?
Todo
autor tem sempre outras vozes na própria voz. Só que,
quando se cruzam influências e tradições artísticas e
literárias, como fizerem tantos autores na história das
literaturas, fica mais difícil individualizar essas
fontes. Fui influenciada por autores de língua
portuguesa, mas também muitos de língua italiana. E de
outras literaturas.
Tenho dentro de mim,
profundamente, um Manuel Bandeira, um Fernando Pessoa,
um Bernardim Ribeiro, um Lêdo Ivo, um Cesário Verde, uma
Florbela Espanca, um Carlos Drummond de Andrade, mas
também um Giuseppe Ungaretti, um Cesare Pavese, um
Giorgio Caproni, uma Alda Merini, um Attilio Bertolucci.
Os leitores querem, muitas vezes, seguir percursos
conhecidos, querem identificar o que já conhecem. Isto é
natural, todos fazemos isto. Porém, os livros que nos
marcam são, na verdade, os mais estranhos, diferentes de
tudo do que temos lido. Espero que assim sejam os meus.
A
produção
poética contemporânea parece ser, ao mesmo tempo, vasta
e abstrata. Hoje, tudo
é considerado poesia.
Na sua opinião, esta seria uma visão elitista? Que lugar
ou função você vê para a poesia no mundo de
hoje?
É
difícil dizer que função a poesia possa ter hoje.
Talvez, ainda seja a função de mostrar-nos o que não
vemos, de fixar sentimentos e pessoas que o tempo
carrega, dos quais não deixa nenhuma memória. Os poetas
falam de quem não entra na história, de quem vive o seu
humilde dia-a-dia que parece nulo, em que cada problema
pesa, cada ferida sangra e dói.
A poesia hoje não
tem mais um lugar na história, na sociedade. O poeta
fala de coisas consideradas reles, claro, sob o ponto de
vista dos privilegiados. Mas para o autor, tudo é
matéria de poesia. A poesia não generaliza, não
arredonda, é o que de mais anti-globalização possa
existir.
Na
sua opinião, sua poesia é
mais aceita e compreendida pelo leitor
brasileiro ou italiano? A questão das
disparidades culturais entre estes povos pode vir
a ser um
fator que influencia na interpretação?
Sinceramente,
não sei. É claro que vivendo na Itália e publicando meus
livros, fica mais fácil o relacionamento com o
leitor italiano. Eles acham minha poesia muito estranha
para a sua tradição, como tenho podido constatar nos
lançamentos dos meus livros ou em recitais que fiz em
várias cidades. E, pelo que me dizem, é justamente esta
"estranheza", esta diferença em relação ao que estão
acostumados, que os atrai. No Brasil, também faço
recitais de vez em quando, mas são mais esporádicos.
Aliás, em agosto sairá no Brasil, pela editora
Escrituras, uma antologia dos meus livros publicados na
Itália. Será um retorno à casa e estou curiosa para ver
como isto se dará.