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Vera Lúcia, brasileira, poeta, professora na Itália: o convívio criativo dos idiomas
quarta-feira - 28/05/2008

Se você entrar num site de busca, e procurar por "Vera Lúcia de Oliveira", encontrará mais endereços italianos que brasileiros. A poetisa, nascida em Cândido Mota, interior de São Paulo, hoje, é professora de literatura na Itália, onde mora.

Vera Lúcia incorporou a língua italiana. Seus versos nascem ora em italiano, ora em bom português brasileiro. Fiel aos dois lados, sempre traduz os versos para um ou para o outro idioma. Mas, a intimidade com o país em que mora se tornou tão grande que a autora já conquistou prêmios italianos de poesia como Prêmio Nacional de Poesia de Senigallia e Prêmio Nacional de Poesia Gino Perrone.

Nesta entrevista, concedida a José Henrique Lopes e a Vânia Goy de Aro, a professora de literatura fala sobre a estreita relação que possui com o idioma italiano e como essa afinidade influencia na sua produção.

Até que ponto as experiências vividas na infância encontram-se hoje presentes em seus poemas?

As primeiras imagens que guardei foram de Assis, cidade do interior paulista, onde a família se fixou, em 1963. Lembro-me nitidamente de um pé de maracujá, que tínhamos no quintal, suas folhas verdes, suas flores intensas, que pareciam bocas, ou olhos, e abelhas no seu barulhinho de viver, um céu azul, um vento macio e quente. Acho que foi a primeira epifania, a revelação da vida, de uma capacidade de sentir e de saber o que estava sentindo.

Tudo isso brotou de uma concreção de coisas acontecendo, de uma visão e de um contato físico com o que estava ao redor. Parece que nasci de fora para dentro, que foi a vida que me acordou para vivê-la e vê-la. Depois, me descobri.

A poesia entrou assim, dessa revelação. Já estava dentro quando comecei a pensar em pôr no papel alguma coisa. Não comecei escrevendo versos. Escrevia um diário, pequenas estórias que ia inventando, de animais, crianças... Lia muito.

Em que momento surgiu o elo com a literatura? Você sempre foi uma pessoa interessada por este campo de conhecimento?

Amava a literatura de maneira visceral. Comecei lendo tudo de José de Alencar, passando posteriormente para outros escritores da literatura brasileira, como Machado de Assis, Graciliano Ramos, Érico Veríssimo e tantos outros, até o grande encontro com Guimarães Rosa. Não tardei em descobrir a literatura portuguesa, a francesa, a norte-americana, a russa, sobretudo Tolstoi, Checkov e Dostoievski, escritores que me marcaram profundamente. Amava conhecer também a história dos povos, costumes e tradições, a arte e a filosofia que caracterizavam os vários períodos da civilização.

O encontro com a poesia deu-se mais tarde, penso que foi devido ao tipo de enfoque literário característico das nossas escolas, que dedicam pouco espaço à poesia. Uma professora me disse, certa vez, que poesia era a mais complexa das artes e que era necessário conhecer muito bem toda a métrica para compor um poema. Isso me levou a esconder os meus versos e me distanciou da poesia por vários anos. Não me sentia preparada para esta arte.

Quando e como surgiu o interesse pela Itália?

Prestei o vestibular na Faculdade de Ciências e Letras da UNESP -Campus de Assis, foi ali que comecei a estudar italiano. Me apaixonei pelo idioma. Acalentava o sonho de conhecer a Itália, sonhava com aquele país. Quando terminei o curso, soube que o Instituto Italiano de Cultura daria dez bolsas de estudo. Participei da seleção e obtive uma delas. Aí começou uma nova aventura. Estudei, viajei, conheci o que seria o meu futuro marido, Claudio Maccherani. Fiquei um período entre o Brasil e a Itália, na maior laceração e dúvida. Depois, como não dava para ficar com um pé aqui outro lá, escolhi a Europa.

No entanto, embora seja neta de italianos, acho que meu interesse por essa língua tenha origem no grande amor pela poesia de Ungaretti. Descobri este poeta na Faculdade de Letras. A gente tem desses encontros na vida. Foi uma outra epifania. De repente, vi realmente o que era poesia. É claro que tive também outros encontros poéticos de grande relevância, como com Bandeira, Drummond, Pessoa, mas com Ungaretti o encontro foi também com a língua, o instrumento de poesia que ele utilizava.

Quais as diferenças e semelhanças que você vê entre a língua portuguesa e italiana?

Em poesia, o poema é vivido na língua em que é escrito. Essa emoção intensa, quando o poema é em italiano, eu a vivo também em italiano. Da mesma forma, quando é em português. Não é possível sentir profundamente algo numa língua e depois exprimi-lo em outra, não com a poesia. A racionalização da prosa permite isso. Por isso, uso mais o italiano na prosa e o português em poesia. Foi assim até hoje.

Português é muito mais afetivo do que italiano. Já no século XV, esse valor foi sublinhado por um rei lusitano, D. Duarte, no livro Leal Conselheiro. Esse rei, que era também um grande humanista, percebeu a riqueza do português para exprimir certos estados de alma, certos sentimentos, como a saudade, ele foi o primeiro a defini-la. Essa palavra não tem tradução em outras línguas porque nem todos os povos têm os mesmos tipos de sentimentos. Uma língua é sempre um universo muito complexo, é um modo de ver e interpretar o mundo. É uma perspectiva.

Sobre seu livro Pedaços/Pezzi, de 1992, José Saramago afirmou não ser capaz de identificar ecos de outras vozes na sua. Como você encara este comentário? Sua poesia realmente não conta com influências de outros autores?

Todo autor tem sempre outras vozes na própria voz. Só que, quando se cruzam influências e tradições artísticas e literárias, como fizerem tantos autores na história das literaturas, fica mais difícil individualizar essas fontes. Fui influenciada por autores de língua portuguesa, mas também muitos de língua italiana. E de outras literaturas.

Tenho dentro de mim, profundamente, um Manuel Bandeira, um Fernando Pessoa, um Bernardim Ribeiro, um Lêdo Ivo, um Cesário Verde, uma Florbela Espanca, um Carlos Drummond de Andrade, mas também um Giuseppe Ungaretti, um Cesare Pavese, um Giorgio Caproni, uma Alda Merini, um Attilio Bertolucci. Os leitores querem, muitas vezes, seguir percursos conhecidos, querem identificar o que já conhecem. Isto é natural, todos fazemos isto. Porém, os livros que nos marcam são, na verdade, os mais estranhos, diferentes de tudo do que temos lido. Espero que assim sejam os meus.

A produção poética contemporânea parece ser, ao mesmo tempo, vasta e abstrata. Hoje, tudo é considerado poesia. Na sua opinião, esta seria uma visão elitista? Que lugar ou função você vê para a poesia no mundo de hoje?

É difícil dizer que função a poesia possa ter hoje. Talvez, ainda seja a função de mostrar-nos o que não vemos, de fixar sentimentos e pessoas que o tempo carrega, dos quais não deixa nenhuma memória. Os poetas falam de quem não entra na história, de quem vive o seu humilde dia-a-dia que parece nulo, em que cada problema pesa, cada ferida sangra e dói.

A poesia hoje não tem mais um lugar na história, na sociedade. O poeta fala de coisas consideradas reles, claro, sob o ponto de vista dos privilegiados. Mas para o autor, tudo é matéria de poesia. A poesia não generaliza, não arredonda, é o que de mais anti-globalização possa existir.

Na sua opinião, sua poesia é mais aceita e compreendida pelo leitor brasileiro ou  italiano? A questão das disparidades culturais entre estes povos pode vir a ser um fator que influencia na interpretação?

Sinceramente, não sei. É claro que vivendo na Itália e publicando meus livros, fica mais fácil o relacionamento com o leitor italiano. Eles acham minha poesia muito estranha para a sua tradição, como tenho podido constatar nos lançamentos dos meus livros ou em recitais que fiz em várias cidades. E, pelo que me dizem, é justamente esta "estranheza", esta diferença em relação ao que estão acostumados, que os atrai. No Brasil, também faço recitais de vez em quando, mas são mais esporádicos. Aliás, em agosto sairá no Brasil, pela editora Escrituras, uma antologia dos meus livros publicados na Itália. Será um retorno à casa e estou curiosa para ver como isto se dará. (Por Por José Henrique Lopes e Vânia Goy de Aro/Faculdade Cásper Libero)






Redação revista eletrônica Oriundi


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