No dia
primeiro de novembro foi entregue em Roma o Prêmio Internacional de
Poesia Pier Pasolini, dedicado a poetas que escrevem em italiano.
Pela primeira vez na história, entre os premiados havia alguém de
outro país. Era Vera Lúcia de Oliveira, autora de “Verrà l’anno”,
considerado um dos três melhores livros de poesia publicados na
Itália em 2005.
Não é só lá que sua poesia faz sucesso. Este é o segundo prêmio dela
este ano. No primeiro semestre, seu livro inédito “Entre as junturas
dos ossos” venceu o Concurso Literatura Para Todos, do MEC. Em 2005
já tinha ganho o Prêmio da Academia Brasileira de Letras, com “A
chuva nos ruídos”.
Vera Lúcia nasceu em Cândido Mota e cresceu em Assis, no interior de
São Paulo. Fez Letras pela UNESP, mestrado pela Università degli
Studi di Perugia e doutorado pela Università degli Studi di Palermo,
na Itália, onde vive há quase 25 anos na Itália: ensina
Literatura Portuguesa e Brasileira na Università degli Studi di
Lecce.
Depois de meses de troca de mensagens (em que a Vera Lúcia sempre foi
de uma gentileza rara entre os premiados), saiu esta entrevista, que
a gente tem o prazer de dividir com vocês.
Ah, na foto da Vera aqui em cima, o fundo é a fachada de uma igreja
de Lecce, onde ela trabalha. “Chama-se Basilica di Santa Croce, e é
uma das grandes obras de arte deste pais, alias umas das mais belas!”
Repararam no ar feliz e à vontade com que a Vera trata a lente? O
fotógrafo é o marido, Claudio Maccherani.
Lendo
uma tradução que você fez de “Mãos Dadas”, do Drummond (“Il tempo è
la mia materia, il tempo presente, gli uomini presenti, la vita
presente.”), lembrei-me de ter lido, não sei onde, alguém dizendo que
sua poesia é feita de memórias. Você concorda?
Acho
que todo autor trabalha com a memória, que é uma reserva de vida que
temos, uma vida roubada à morte. A literatura e a arte nasceram para
roubar, da morte, a vida e a poesia, nisso, vai fundo. O tempo
presente é, sim, a nossa matéria, como diz Drummond, mas o tempo
presente de cada um, que passa pelo próprio corpo. Não é um tempo
presente genérico e abstrato, que não vivemos. É o tempo das escolas
que freqüentamos, é o país em que nascemos, é a família que temos, e
assim por diante. E isso não se dá por egoísmo, por estarmos
centrados só no nosso pequeno mundo, mas porque é o que podemos
conhecer melhor, é onde podemos penetrar com todos os sentidos,
esmiuçar com a nossa razão. Ninguém – por mais que queira - pode
entrar na consciência do outro, olhar lá dentro, ver como essa pessoa
sente as coisas, como vê realmente o mundo. Temos só nós mesmos,
somos nossas paredes e, para quem tem curiosidade de entender
profundamente o ser humano, somos nossas cobaias.
Então, por isso, a poesia acaba sendo auto-centrada, porque o poeta,
esse cientista da alma, só tem objetivamente, como objeto de análise,
o seu corpo e a sua alma. O resto são hipóteses, desejo de
conhecimento, curiosidade, paixão pela vida e pelas pessoas. Mas
ninguém pode garantir que nossas percepções correspondam mesmo à
verdade das coisas. Uma amiga, lendo o meu último livro, No coração
da boca (Escrituras, São Paulo, 2006), disse ao marido, que é o
Carlos Machado, também grande amigo: “A Vera é especialista em
gente”. Achei isso bonito, não sei, me deu muita alegria. Porque se
tem uma coisa que me interessa são as pessoas, as que fui encontrando
e as que ainda vou conhecer. Então, para retomar sua questão, sim a
memória que eu recupero, a minha e (espero) a de tantos outros, são
minha matéria de poesia.
Este
estoque de lembranças forneceria a você matéria prima para escrever o
resto da vida? Vamos supor que você se isolasse do mundo para
transformar suas lembranças em poesia: conseguiria se “esvaziar”? Ou
é preciso alguma interação com “a vida presente” para disparar o
gatilho do primeiro verso?
Se
eu me isolasse, não escreveria mais. Interessa-me o mundo,
interessa-me a vida, toda a vida, desde a dos insetos até a dos
deuses. Sempre gostei das grandes cidades, porque posso observar sem
ser observada. Ando pelas ruas, olho, presto atenção, vejo tanta
coisa. Há tanta fome no mundo, não só fome de comida, fome de
atenção, fome de carinho, fome de revolta, de religião, de calor
humano, de felicidade. Uma amiga me disse, várias vezes, que não
posso fixar-me na observação só da tristeza. Refleti sobre isso, de
fato acho que não vejo só a tristeza e que desejo, também, ver a
felicidade e a beleza, vê-las e senti-las em mim e nas pessoas com quem
vivo e mesmo nas que nem conheço.
Acontece que Deus me deu um ouvido, que ouve certas coisas, um ouvido
que capta essa fome que as pessoas têm, essa carência sempre de tanta
coisa. Lendo o Inferno de Dante, vi nele a descrição do nosso mundo,
esses “dannati” infelizes somos nós, são os homens de todos os
séculos que foram feitos para desejar o que não podem ter. Tenho um
ouvido que ouve essas coisas, mesmo tapando-o com as mãos, como fazia
quando era menina, continuo ouvindo, porque ouço dentro. Então, a
poesia é só um jeito da gente lidar com a vida, de não se queimar
demais com ela. De certa forma, é uma compensação. No momento em que
nasce o poema, participamos da gênese do mundo.
Todo
este seu conhecimento imenso sobre literatura não inibe você de vez
em quando, no ato de escrever? Seja por estar remetendo a algum
referencial forte, seja por julgar que algo que acabou de escrever
não está à altura do que você acumulou?
Meu
conhecimento não é tão imenso assim, há muita coisa que aprender, não
estou nem na metade... No entanto, não, o que sei não me inibe. São
dois planos diferentes, uma coisa é a criação poética, para mim quase
uma iluminação, uma manifestação do sacro, outra coisa é o trabalho
racional do pesquisador, do professor e do crítico. Quando escrevo,
não penso nesta ou naquela teoria, é tão intenso e forte o momento
criativo que ele cria a si mesmo e me cria também. A matéria, a
poesia inventa sua própria forma. Não inibo, não censuro a priori,
não deixo que a crítica literária interfira, determinando o que pode
ou não poder ser poesia. Sou como as mães, a maioria das mães, que
aceitam um filho mesmo raquítico, magricela. Depois, é claro, mas
muito depois, faço a seleção. Ai entra a figura do pai, que impõe o
que fica, o que não fica. Brincadeira à parte, sei que muitos
colegas, bons poetas, deixaram que o lado do professor abafasse o
lado criativo. Em mim, se deu o contrário, o lado poético acabou
determinando o meu modo de ler e mesmo de ensinar literatura. Vai ver
que este era o lado mais forte....
Com
base neste conhecimento seu, o que você diria sobre concisão poética?
Ela é, necessariamente, de poucas palavras? Ou torrentes de palavras
também podem ser concisas, à sua maneira, na medida em que abrangem o
todo que o poeta quis mostrar?Não há regras, ou seja, há regras,
mas não válidas para todos. Há poetas que se espraiam pela página,
grandes poetas barrocos na forma, que deixaram obras maravilhosas, e
outros que têm necessidade de comprimir, enxugar, deixar na página
quase que só o silêncio e um ponto final, para dizer que terminaram o
poema. Cada um tem que achar a sua dimensão, e isto é determinado
pelo que deve ser expresso, é a matéria que forja sempre a forma, não
o contrário. O importante, num poema, é que tudo sirva, tudo seja útil
e tenha a sua função. Se sobrar palavras, não presta.
Uma
das coisas que mais me fascinam na poesia é saber que determinado
poema, apesar de vivermos em um mundo com milhares de poetas, é
único. Ou seja, somente a Vera Lúcia, por exemplo, foi capaz de ordenar
aquelas duas dúzias de palavras naquela seqüência que as transforma
em arte. Poesia, por causa disto, não tem também um quê de
misticismo?
Sim,
como disse, poesia é uma espécie de epifania, de encontro com uma
energia misteriosa do mundo. Quem escreve e sente a poesia,
profundamente, sabe que Deus existe, não importa como queiramos
chamá-lo ou defini-lo. Meu marido é ateu, eu lhe digo, ao contrário,
que não posso deixar de crer que há um ser supremo. Toco, de certa
forma, qualquer coisa de sua esfera, quando nasce um poema que sinto
que está dizendo o que precisa ser dito, nem mais, nem menos.
É
fascinante, para quem está do lado de cá, esta desenvoltura com que
você se move em ambientes tão distintos: brasileira professora de
literatura na Itália, poetisa bilíngüe, premiada constantemente em
dois países... Você fazia idéia, lá pelos idos de 80, de que seu
universo se ampliaria tanto?
Ah
não, não fazia idéia de tudo o que ia viver. Sempre fui muito nômade,
desassossegada, como diria Pessoa, e tinha vontade de viajar,
conhecer mundos e pessoas. Fiz isto por mais de dois anos, andei por
toda parte, com alguns intervalos de estudo na Itália, fui de um país
para o outro, com pouquíssimo dinheiro. Nunca viajei sozinha, pois
não sou assim tão corajosa, combinava com amigas, meio loucas como
eu. Viajávamos de trem, dormindo num país e acordando em outro. Foi
um período em que sentia realmente que era cidadã do mundo, dona do
meu destino. Mas essas coisas a gente faz por um certo período,
quando tem idade para fazê-las, depois tem que retomar estudos,
trabalho.
Foi o que fiz, indecisa por algum tempo. Depois me casei, passei a
viver na Itália, ainda sem plena consciência dos problemas que
enfrentaria, pois não viveria mais como viajante ou turista, mas
enfrentaria o dia-a-dia normal, rotineiro. Foi aí que surgiram as
dificuldades que encontram um estrangeiro num outro país, e tudo se
complicou. Tive que recomeçar de novo, outra licenciatura, outro
trabalho, outra vida... No Brasil, queria fazer o doutorado, e continuei
querendo isso na Itália. Só que entrar num doutorado, na Itália, é
coisa muito difícil (na época, por exemplo, só havia três bolsas de
estudos por ano, para o curso que eu desejava, e sem uma bolsa era
impossível continuar estudando).
Eu punha tanta expectativa nisso que as pessoas, os próprios amigos,
temiam por mim e me desencorajavam, dizendo para tentar qualquer
outra coisa, que havia outras possibilidades em outros campos, que eu
sonhava muito alto (mas, isso, diziam-no de forma delicada, claro).
Não vou contar aqui todas as dificuldades, que foram tantas. Entrei
mesmo num período de depressão, em que tudo parece que se desmoronou,
não tinha mais energias para perseguir meus sonhos. Foi graças ao meu
marido eu consegui sair daquele beco fechado. Com paciência, ele foi
me puxando para fora. Fui retomando, aos poucos, os livros, fui
caminhando, prestei concurso na Universidade de Palermo para o Curso
de Línguas e Literaturas Ibéricas e Ibero-americanas, passei com
bolsa (fui a primeira classificada), fiz a pesquisa do doutorado no
Brasil e depois defendi a tese na Itália. O livro, resultado desse
estudo, foi publicado pela Editora da Unesp e Edifurb, em 2000, com o
título de Poesia, mito e história no Modernismo brasileiro, e saiu
também na Itália. Prestei depois concurso na Universidade de Lecce, e
hoje ensino ali, na Faculdade de Línguas e Literaturas Estrangeiras,
com muita paixão pelo meu trabalho de pesquisadora. Publiquei depois
outros ensaio, e este ano saiu o livro Storie nella storia: Le
parabole di Guimarães Rosa (Pensa Multimedia, Lecce, 2006), que é um
estudo sobre o livro Sagarana, a primeira obra desse grande escritor.
Nunca deixei, nesse tempo todo, a escritura criativa, ora numa
língua, ora na outra. Na semana passada, fui à cerimônia de entrega
do Prêmio Internacional de Poesia Pasolini, em Roma, pois o meu
livro, Verrà l’anno (Fará, Santarcangelo di Romagna, 2005), foi
considerado um dos três melhores de poesia, publicados no último ano
na Itália. Posso dizer que fiquei muito emocionada, e penso sempre em
meus pais, nessas ocasiões, meus pais que lutaram tanto e me
incentivaram nesse desejo, que sempre tive, de saber e de conhecer.
O
livro, que nos últimos séculos foi o “transportador” da cultura de
uma parte para outra, parece estar entrando em crise. Há um excesso
de obras, aparentemente tanto na Europa quanto no Brasil; desapareceu
aqui a figura do crítico culto, capaz de orientar o leitor no meio
deste mercado; a internet, com sua “pirataria” e seus blogs,
democratizou a escrita nos dois sentidos... Você concorda com a
opinião da maioria, de que o livro está em extinção?
Não
concordo. Acho até que, quanto mais passa o tempo, mais ele vai se
tornar um objeto precioso. Um livro é o que fica, o que nós podemos
tocar, manusear. A relação de quem lê com um livro é sensual, eu
preciso senti-lo, e maltratá-lo quando é necessário, quando ele
resiste à leitura e a gente tem que ficar com dicionários ou
enciclopédias na mão, para poder entendê-lo. Tenho livros que
carregam todas as marcas de que foram lidos várias vezes. Outros são
delicados, precisam de espaço especial, tem o tempo certo para serem
relidos. Um livro respeita o silêncio, nunca se intromete onde não
deve. A Internet é um espaço de rumor, não de silêncio, serve só para
a gente ir visitá-lo quando é preciso, para pesquisar alguma coisa
que será aprofundada mais tarde, num livro, mas depois... a gente
desliga, distancia-se. Pelo menos é assim para mim, preciso de muito
silêncio para perceber melhor as coisas e o mundo.
Pouca
ou mediana, a remuneração que se consegue com livros ajuda na
sobrevivência dos poetas. Sem os livros, ainda haveria tempo para a
poesia no cotidiano?
A
poesia existe mesmo sem os livros. Mas a gente tem que saber o lugar
certo e as pessoas certas, onde ela se manifesta. Tem gente que é
poeta na vida e na alma, que nem sabe escrever, mas que tem a poesia
em si, nos gestos, no modo de ser, na paixão e no amor que põe em
tudo o que faz. Outros nem sabem o que é poesia, vivem rasteiros, não
levantam vôo, não são capazes de olhar para a magia de cada gesto,
que nunca mais vai se repetir. Então, se uma pessoa tem este dom de
ver ou de gerar poesia, e sabe detê-lo, sabe transformar os momentos
intensos em palavras, cores, sons, isso é um presente para todos nós.
Essa
convivência com duas línguas facilita ou atrapalha sua poesia? Uma
antologia dos seus escritos preferidos teria alguma língua
prevalecendo sobre a outra?
Sinceramente
não sei, porém espero que não atrapalhe. O que sei, é que se uma
coisa não consegue ser dita por mim em uma língua, mais cedo ou mais
tarde ela volta na outra. Há vários estudos sobre isso, sobre este
aspecto psicológico do bilingüismo e eu mesma já estudei esta questão
em outros autores.
Agora, o bilingüismo literário atrapalha na divulgação do que
escrevo. No Brasil, só se interessam, quando se interessam, claro,
pelos textos em português, e na Itália, pelos textos em italiano.
Ultimamente, sinto-me um tanto dividida por isso. Não que o seja
dentro, mas vejo que o sou fora, no modo como me lêem. Sei, no
entanto, que estou fazendo sempre o mesmo percurso, de uma língua à
outra, não sei ainda onde vou chegar, mas o caminho é esse. Neste
momento, não há outro.
A
tristeza, você mesma já disse, é recorrente. Ao mesmo tempo, você é
uma pessoa feliz, porque trabalha, pesquisa e se diverte com a
palavra, sua grande paixão. A tristeza é necessária?
Não
sou feliz nem infeliz, talvez esteja na média, como tantas pessoas.
Vejo, porém, muita mais infelicidade do que o contrário. Outro dia,
estava dizendo a meu marido, meio brincando e meio seriamente, por
que as pessoas felizes não saem cantando pelas ruas, por a gente não
vê as pessoas contentes, sorrindo, abraçando-se de felicidade, quando
estão alegres? Mas vê, e muito mais freqüentemente, gente sofrida e
infeliz, frustrada, maltratada pela vida, pisada até pelos próprios
parentes. E estas pessoas carregam no rosto a infelicidades delas.
Ele me respondeu que as pessoas têm medo de ser feliz, e talvez tenha
razão. De qualquer forma, a tristeza é necessária só para nos fazer
perceber a diferença, para nos fazer valorizar o encanto dos momentos
de graça.
Você
já disse que a palavra é algo físico, que tem sabor, cor e
consistência. Que palavra portuguesa você gostaria de saborear
sempre? E qual seria a correspondente italiana? Gosto muito
da palavra “maresia”. Acho-a poética, mágica. Há muitas outras
palavras que amo da língua portuguesa, que repito às vezes dentro de
mim, e que ficam ecoando. Da língua italiana, uma parecida (pelo
contexto marinho), é “salsedine”, também muito linda. Uma não é
tradução da outra, aliás não há tradução perfeita desses termos, de
uma língua para a outra, e é uma pena, pois ambos sugerem poesia.
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