O Brasil ficou mais pobre sem Luciana Stegagno Picchio

*Vera Lúcia de Oliveira, Setembro de 2008.

(http://www.ube.org.br/lermais_materias.php?cd_materias=2726)

Conheci Luciana Stegagno Picchio em 1983, quando obtive uma bolsa de estudos do “Ministero degli Affari Esteri” italiano, para passar um ano de estudos e pesquisas na Universidade para Estrangeiros de Perugia. Recém-formada, já tinha, então, iniciado o mestrado na Faculdade de Letras da Unesp de Assis, e tinha como projeto o estudo da obra de Murilo Mendes, poeta que passou os seus últimos anos em Roma.

Já na Itália, não demorei em procurar a professora Luciana, que era catedrática de literaturas portuguesa e brasileira na Universidade de Roma e que tinha sido grande amiga de Murilo Mendes, tanto que a ela o poeta mineiro deixara em custódia parte do seu acervo, formado por cartas, manuscritos e outros documentos. Eu tinha esperanças de achar textos poéticos inéditos do autor e queria rastrear o período passado em Roma, anos que foram fundamentais para a maturação da sua poesia.

Lembro-me, como se fosse hoje, da minha embaraçada timidez diante da ilustre estudiosa, mas,  sobretudo, lembro-me da sua afabilidade e do carinho com os quais me recebeu, dedicando-me tempo e atenção e pondo-me nas mãos um livro inédito de Murilo, "Carta geográfica", convidando-me a lê-lo e a escrever algo sobre tal texto. Tratava-se, na verdade, de um livro de viagens, eram impressões e reflexões ligadas aos lugares visitados pelo autor ao longo dos anos, uma condensada prosa poética que me ajudaria a interpretar aspectos interessantes da obra muriliana. O texto não era, devo confessar, exatamente o que eu estava procurando, mas lembro-me de que voltei para casa lendo e relendo, já no trem, as páginas datilografadas, com correções feitas a mão pelo próprio autor. Semanas depois estava pronto o meu primeiro ensaio, "Carta Geográfica, de M. Mendes", publicado em 1987, no número 23 da revista que a própria Stegagno Picchio dirigia, Letterature d’America, num número monográfico inteiramente dedicado à obra do grande poeta mineiro.

Começou assim, sob o selo da poesia, uma relação de amizade e carinho que durou pelos anos afora. Distante da minha família, ela me adotou e eu adotei-a não apenas como docente e guia pelo difícil mundo acadêmico, literário e crítico italiano, mas também como pessoa sensível e generosa, que seguiu com atenção, rigor e sensibilidade o amadurecer em mim da poesia, primeiro em português, depois em italiano, tranqüilizando-me quanto ao receio que eu tinha nos primeiros tempos de vir a perder o português como língua poética. E assim, trilhando um duplo binário, a poesia me recompensou com suas visitas raras mas preciosas. Luciana prefaciou três livros meus, Geografie d’ombra, de 1989, Uccelli convulsi, de 2001 e No coração da boca / Nel cuore della parola, de 2003.

Essa amizade, esse carinho, que ela dedicava a muitos jovens como eu, guiando-nos e sabendo como e quando redargüir–nos com severidade, sinto-a ainda viva dentro, mesmo agora, com a consciência de que não mais vou poder percorrer, com alegria e um sentimento de expectativa, o trecho de Via Civitavecchia que me conduzia ao número 7, a um tranqüilo e elegante prédio, que era – para a maior parte dos brasileiros e portugueses que passavam por Roma e que se interessam por arte, literatura e cultura – uma espécie de sucursal do Brasil, muito mais conhecido e visitado do que a própria Embaixada Brasileira em Roma, situada na Piazza Navona.

Luciana Stegano Picchio nos deixou nessa quinta-feira passada, 28 de agosto, numa tarde quente e ensolarada, numa Roma quase deserta de seus habitantes, os quais avidamente gozavam os últimos momentos de férias do verão nas praias próximas e distantes da capital italiana. E hoje, sinto que todos ficamos mais pobres sem a sua figura carismática, cuja obra é um marco para todo o mundo da lusofonia. Filóloga ilustre, medievalista, brasilianista, historiadora de teatro e de literatura, professora emérita da Universidade de Roma, sócia correspondente da Academia Brasileira de Letras, com mais de quinhentas publicações sobre a língua portuguesa e as literaturas de expressão portuguesa, obras traduzidas e publicadas em muitos países e muitas línguas, que aproximaram o universo lusófono da Europa e do mundo e que tornaram conhecidos grandes escritores de língua portuguesa.

O seu amor pelo Brasil nasceu em 1959, quando pisou pela primeira vez no solo desse país. E sua primeira experiência nas plagas brasileiras se deu em Salvador, cidade que a encantou e que ficará para sempre como uma grande paixão. Em quarenta anos, realizando pelo menos duas viagens por ano ao Brasil, visitou-o de norte ao sul, instaurou relações de amizade com professores, críticos e escritores entre os maiores, como Celso Cunha,  Antenor Nascentes, Alexandre Eulálio, Jorge Amado, Carlos Drummond de Andrade, Antonio Candido. Nessas viagens, mergulhava de corpo e alma na cultura brasileira, queria conhecer tudo e falar com todos, armazenar livros, palavras, rostos, frases soltas no ar, momentos quase epifânicos que ela depois, já de volta à sua casa, "ruminava" à maneira de Guimarães Rosa, dando origem mais tarde a ensaios e livros.

Entre as suas obras, estão a pioneira História do Teatro Português, de 1964, a obra La Letteratura Brasiliana, publicada em 1972 e inteiramente revista e atualizada em 1997, com o título História da Literatura Brasileira, que saiu contemporaneamente na Itália, pela Einaudi, e no Brasil, pela Nova Aguilar. O seu método rigoroso de filóloga e de comparatista da literatura, come justamente ressalta um dos seus mais brilhantes ex-alunos, o escritor italiano Antonio Tabucchi, lhe permitiu estudos e edições críticas fundamentais, que abrangem desde poetas e trovadores galego-portugueses, passando por Gil Vicente, Luís de Camões, Eça de Queiroz, Machado de Assis, até os contemporâneos Fernando Pessoa, Giuseppe Ungaretti, Murilo Mendes, Alexandre O’Neill, Jorge de Sena, Carlos Drummond de Andrade, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Sophia de Mello Breyner, David Mourão-Ferreira, Jorge Amado, António Lobo Antunes, José Saramago e tantos outros.

Nos últimos meses, já não recebia em casa os amigos e, por telefone, respondia aos nossos apelos com voz embargada de emoção. Luciana se foi em silêncio, mas deixou suas palavras luminosas, fios de luz que se cruzam em tantos espaços e direções e que unem pessoas de tantas latitudes. Um dia (ela já estava bastante doente), ouvia-a dizer: "Ainda sou capaz de fazer uma viagem, uma longa viagem, só para rever um amigo." Talvez ela agora só tenha partido para uma dessas viagens afetivas, ao encontro de amigos que se foram antes dela e que a esperam nalgum lugar, nalguma confluência de tempo e de espaço para onde vão todas as alegrias e as dores da humanidade.

*Vera Lucia de Oliveira é professora de literatura brasileira e portugesa na Universitá degli Studi  di Lecce,Italia.

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