No limiar dos seus vivazes oitenta anos, quando há
pouco publicou a monumental Poesia completa
1940-2004 (Topbooks, Rio de Janeiro, 2004) que traça, nas suas mil e
cem páginas, um percurso de mais de sessenta anos de literatura que o
coloca entre os nomes mais altos da poesia brasileira, Lêdo Ivo
oferece-nos este inesperado Réquiem, um denso e compacto livro de
poemas que se lê de um fôlego, com o espanto, a luminosidade e a comoção
que trazem sempre consigo a grande lírica.
Como sempre foi para Lêdo Ivo, e sem negar
o requinte formal e artesanal dos seus versos, a poesia é iluminação,
são lampejos rimbaudianos na noite escura da
vida e da morte (e não é um caso que o autor tenha traduzido, em 1957,
as Illuminations de Rimbaud).
Encontramo-nos diante de uma espécie
de sunto poético e filosófico, um condensado forte e compacto de
toda a sua obra, um tocar o fio imperscrutável do universo, por
onde passa uma densa e secreta linfa e que só poucos conseguem roçar,
correndo o risco de serem fulminados. Todo grande poeta o toca com
delicadeza, como faz Lêdo Ivo, e não se queima, pelo menos não de forma
visível, ou não o bastante para morrer.
O poeta repercorre, nessas páginas, tantos momentos
de sua vida, a partir de uma recordação da infância, uma obsessiva
recordação, diria, da cidade de São Miguel dos
Campos, berço da sua família materna. Ele era ainda menino quando
acompanhou o pai, que era advogado, em uma viagem a esta cidade de
Alagoas e à vizinha Barra de São Miguel, localidade litorânea e
território no qual viviam, no tempo do Brasil colônia, os índios Caetés,
antiga população da qual descende Lêdo Ivo.
Os Caetés entraram tragicamente para a história
brasileira após o naufrágio do navio que transportava o primeiro bispo
do Brasil, Dom Pero Fernandes Sardinha, que foi
capturado e literalmente devorado pelos índios, junto com os outros
membros da tripulação, num cerimonial antropofágico característico de
algumas tribos costeiras do Brasil quinhentista. A seguir, e por
represália, os Caetés foram perseguidos pelos portugueses e quase
completamente exterminados.
Considerados por muito tempo, pela historiografia
oficial, sobretudo portuguesa, como povos bárbaros e selvagens (e
diga-se, a tal propósito, que essa imagem foi funcional à colonização e
justificou tantos massacres, inclusive de grupos que não praticavam a
antropofagia), os Caetés foram “recuperados” pela literatura brasileira
em chave simbólica e mítica, no momento em que todo o passado nacional
era revisto à luz de uma nova consciência, no início do século XX. Os
modernistas, de fato, inverteram a imagem negativa do mau selvagem,
associada quase sempre aos grupos que se opuseram à colonização, e
Oswald de Andrade chega mesmo a propor que o momento culminante da
fundação do Brasil fosse esse em que os índios Caetés,
desafiando o poder político e religioso do Império
lusitano, haviam - iconoclasticamente - comido o bispo.
Justamente nesse espaço cheio de simbologia e
história, diante do oceano, que o poeta denomina “Mar caeté”, havia já
na época da sua infância um estaleiro naval abandonado e em ruínas,
restos de uma arqueologia industrial a decompor-se, expostos, como eram,
à salsugem e à umidade do ambiente lacustre característico da
região, chamado, por isso, das Alagoas, pela presença de lagoas
costeiras, onde estagna a água do mar e onde cresce a típica vegetação
dos mangues.
Esse lugar sugestivo, impresso-se na memória em um
momento da infância em que as imagens e os eventos nos marcam com maior
força e nitidez, retornará com freqüência na obra do poeta, como
voltarão os detritos dos navios abandonados, os elementos da paisagem
marítima, os animais lacustres, os peixes e as aves migratórias, as
igrejas carcomidas das pequenas cidades e vilas, os cemitérios e os
manicômios, os lugares degradados pelo tempo e pela
ferrugem que ele ama, como ama as coisas e as pessoas marginalizadas,
junto com os seus ancestrais Caetés, eternizados num rito prodigioso e
primitivo que os levou à morte.
Repercorrendo com a memória tantos momentos da sua
vida, no livro Confissões de um poeta,
publicado pela primeira vez em 1976, o autor, referindo-se à sua Maceió
e ao estado de Alagoas, afirma:
Quem
nasce aqui, respira desde a infância um aroma de açúcar, vento, peixe e
maresia, sente que o oceano próximo cola em todas as coisas e seres um
transparente selo azul. (...) No alto da colina, o branco farol da minha
terra vai iluminar a noite, quando esta vier esconder as aranhas e
lacrais, e os sonhos e os segredos dos homens. Luz branca. Eclipse. Luz
encarnada. Os feixes do farol clareiam os telhados enegrecidos pelas
chuvas, as ladeiras, os coqueirais que cantam e dançam na noite longa,
os mangues onde água e terra se dissolvem, os cajueiros floridos. No
universo redondo, entre os goiamuns ocultos na lama negra das alagoas e
as constelações, entre os fogos de santelmo e os cantos dos galos, o
farol de Maceió guia os navios e os homens.(1)
Todo esse universo, em que mar e terra se misturam e
se dissolvem um no outro, como no início do mundo, esse lugar ligado às
suas origens, à sua infância, à história da
própria família, volta nesse breve poema do regresso, do refluxo, das
perguntas sem resposta que o poeta pôs ao longo de toda uma vida, das
respostas que não elucidam e não satisfazem a dolorosa espera dos
homens. Diante do estaleiro apodrecido e dos navios deixados a
languescer no porto, o poeta vê-se de novo a fixar o
oceano sem fim, a dialogar com a noite e com o dia, a chorar a dor de
ser uma criatura mortal com o desejo lancinante de eternidade, com o
anseio de subtrair, à morte, seres e lugares queridos, com a impotência
e a fragilidade que, inevitavelmente, nos marcam.
Não se pode ler este livro sem dor e comoção e,
paradoxalmente, sem a sensação de alegria e beleza que proporciona
sempre a grande poesia, mesmo quando trata de sofrimento e morte.
Esse é o enigma da palavra poética, dor que tem, em
si mesma, a alegria do humano tocado por Deus, ou de Deus tocado pelo
homem num momento de êxtase.
Se as perguntas metafísicas, imemoriais e cósmicas
que põe Lêdo Ivo ao mar, ao vento e à noite não têm respostas, elas são
necessárias e têm razão em si mesmas e no fato que o homem
é uma criatura pensante, uma consciência viva e atenta até mesmo quando
caminha para o nada. O poeta afirma, de fato, que A eternidade passa
como o vento. / Só o tempo é eterno, invertendo, assim, um
consolidado axioma, ligado às nossas concepções de tempo e de
eternidade, para evidenciar que a eternidade não passa por nosso corpo,
não a conhecemos, nossa consciência não a contém em seu núcleo. Contemos
o tempo e o tempo vivido e absorvido verticalmente é a única coisa que,
de eterno, possuímos.
O magma incandescente desse lirismo plasma a sua
forma torrencial, por vezes obsessiva nas imagens recorrentes, nos
versos longos que quase tiram o fôlego ao leitor que desejasse seguir
sua exata amplidão. A linguagem, encantatória e elegíaca, rica de
pathos dramático, mantém o tom coloquial, como na melhor tradição
poética brasileira. A música é de uma harmonia
encrespada, como as ondas do mar, marcada pelas tantas interrogações:
Onde estão os loucos de minha infância, / os loucos que cantavam e
dançavam no hospício devastado pelo sol? / Onde estão os meus navios e a
luz do farol?
A vida é vista como um caminho, um percurso breve e
intenso, ao fim do qual ele se vê com menos certezas do que quando
partira. E se o mar e a noite parecem sorver as nossas vozes
individuais, a poesia permanece como um lampejo de
consciência difuso, testemunho de amor, profecia da noite que, mais do
que nos abater, revela afinal que a vida deve ser vivida.
Trata-se, aqui, de uma poesia elegíaca, mas, ao mesmo
tempo, límpida e luminosa, poesia de um amor declarado à amada perdida,
saudação a um tempo compartilhado com os seres queridos, recuperação da
memória, balanço dos caminhos feitos e dos lugares vistos, abraço
fraterno e passional à existência e às palavras
que a tornam verdadeira, despedida da infância, pranto contido e prece.
Réquiem, o título da
obra, é a primeira palavra da oração latina, na liturgia dos mortos,
requiem aeternam dona eis Domine, “o repouso eterno doe-lhes ó
Senhor”. O réquiem é uma invocação e é o canto
de uma ausência. Celebrar ou cantar o réquiem é reviver, na memória, a
pessoa ausente, é refletir sobre laços e relações interrompidos
repentinamente. Nesse sentido, o réquiem faz parte daquele processo de
elaboração do luto que é fundamental para que possamos aceitar a
separação, a perda das pessoas queridas.
O pranto pela morte da amada se associa aqui, porém,
à evocação do amor humano intenso e pungente, como é próprio da elegia.
De fato, ao elaborar o luto, Lêdo Ivo celebra, ao mesmo tempo, e
obstinadamente, a vida compartilhada em plenitude,
reafirma ainda e sempre a ternura e o milagre dos afetos, a intensidade
do sentimento de união que ele estabelece com os seres e coisas, mesmo
as menores e aparentemente insignificantes:
Sempre amei o dia que nasce. A proa do navio,
a
claridade que avança entre as sombras esparsas,
o
longo murmúrio da vida nas estações ferroviárias.
(...)
E
sempre amei o amor, que é como as alcachofras,
algo
que se desfolha, algo que esconde
um
verde coração indesfolhável.
(...)
Sempre amei o que vive na água negra dos mangues.
Sempre amei o que nasce. Sempre amei o que morre
quando a noite desaba sobre as casas dos homens.
O
réquiem de Lêdo Ivo assemelha-se curiosamente
às bem-aventuranças evangélicas, ressoa nele o
“Sermão da montanha” (Mateus, 5, 3-11; Lucas, 6, 20-22), tanto na
estrutura do texto quanto em seu significado íntimo, de discurso
revolucionário que subverte preceitos consolidados:
Felizes os que partem.
Não
os que chegam aos portos apodrecidos.
Felizes os que partem e não regressam jamais.
(...)
Felizes os que viveram mais de uma vida.
Felizes os que viveram vidas inumeráveis.
Felizes os que desaparecem quando os circos vão embora.
(...)
Felizes os que moram nas ilhas periféricas
e
são rodeados ao cair da noite por uma nuvem de tanajuras.
Felizes os sedentários que um dia foram embora.
Afirma o poeta e crítico Ivan Junqueira
que, “ao contrário de muitos poetas cuja produção se amesquinha na
velhice, a de Lêdo Ivo cresce ainda mais"(2), acrescentando
ainda que se a comparássemos ao vinho melhor, que quando mais envelhece
mais se torna precioso, o conceito que daí adviria é o da “maturidade do
maduro, ou seja, o do sabor dessecado de uma passa que ainda soubesse ao
frescor da uva. Um fruto cristalizado. Quase
um diamante." (3) Ao ler e ao realizar, com o poeta, esse
visceral percurso nas palavras e na vida, sentimo-nos também “felizes”,
ou seja incluídos nas suas extravagantes e poéticas bem-aventuranças,
nós leitores a quem foi dado, como uma prodigiosa oferta, esse seu
maduro e denso fruto de poesia.
Vera
Lúcia de Oliveira
NOTAS
Ivan Junqueira, “Quem tem medo de Lêdo Ivo”, in Lêdo Ivo,
Poesia Completa 1940-2004, Topbooks, Rio de Janeiro,
2004, pp. 25-43 (41).
Ivi.