Entrevistacom Vera Lúcia de Oliveira
(Maccherani)
de Raul Henriques Maimone
1997
publicada na Revista
"Insieme" Revisa da APIESP
Associação de Professores de Italiano do Estado de São Paulo n.7, São Paulo, Brasile, 1998-1999, pp.43-51
A experiência ao longo da
vida, a formação intelectual, as leituras, o contato com as artes, a percepção do ser
e do mundo constituem inegavelmente parte significativa de surgimento e crescimento da
poesia. Diga alguma coisa a respeito da gênese da sua poesia segundo esta
perspectiva.
Penso que a poesia é uma atividade muito lenta,
que requer decantação, reflexão. É uma viagem vertiginosa em vertical. E tudo entra e
deixa marcas na gente e, quando menos se espera, se transforma em palavra. Sempre tive
paixão pelas viagens, e uma inquietude quase dolorosa, que me faz sempre querer o que eu
ainda não alcancei, os lugares que não vi, os livros que não pude ler ainda. Crescendo
numa cidade do interior, não era fácil muitas vezes satisfazer essa curiosidade
insaciável pelo que acontecia no mundo, além da minha rua, da minha vila, do meu país.
Não era fácil nem mesmo saber o que acontecia no Brasil, naqueles anos sufocantes de
ditadura. Na escola, em casa, minhas perguntas ficavam sem resposta. E eu achava o mundo
muito triste, muito injusto, não compreendia porque uns tinham tanto e outros nada,
porque alguns amiguinhos na escola não tinham o que comer, porque via crianças laceradas
pelas ruas, sem possibilidade de crescer, de viver. Minha poesia nasceu sem forma de
poesia, nasceu assim de um questionamento da realidade. Eram perguntas e respostas que eu
fazia e que eu mesma respondia, em cadernos que iam se enchendo de inquietações. Mais
tarde, graças às experiências, às leituras, fui descobrindo formas mais eficazes,
intensas, sintéticas, de expressão. Foi o momento do encontro com a poesia de Drummond,
Manuel Bandeira, Mário de Andrade. Já tinha tentado a prosa, breves contos, e tinha
inclusive recebido incentivos de alguns professores. Mas o mundo parecia tão complexo,
tão maior do que as palavras, tão mais pesado e doloroso... O encontro com a linguagem
poética me descortinou novos horizontes, porque a poesia tem a capacidade de revelar,
esclarecer, iluminar a realidade, de unir contrários, de conciliar contradições, de
abater distâncias entre a palavra e a coisa, de aproximar o homem de si mesmo, de escavar
na vida e na morte, de penetrar nas frestas da alma de cada coisa e de cada ser.
Pessoalmente, acho que a poesia tem pouco a ver com a música (como pensavam os
simbolistas), ou com a fotografia (como achava a "geração alternativa"), ou
com o cinema (como afirmavam os concretistas), ou com a engenharia (como diz João
Cabral). Poesia é um pôr a mão na alma das coisas, é intrujar-se em tudo o que é ser,
é não poder ver um ângulo, uma fresta, um vão, um interstício, sem querer entrar lá
dentro. Porque se escreve, não sei, sei só que posso morrer se não puder me dedicar a
essa atividade misteriosa que é a escritura.
Desde o primeiro livro, "A porta range
no fim do corredor" (1983), até "Pedaços/Pezzi" (1992), fica evidenciada a preferência por
versos curtos e irregulares em relação ao número de sílabas (anisossilábicos), como
também o corte abrupto com o aproveitamento de espaços em branco. Do mesmo modo, não
há a utilização dos metros e rimas tradicionais. Tais opções estariam ligadas às
visões de mundo, de história, de vida recortadas na perspectiva do fragmento, da
contradição, do desencontro?
Exatamente, estão muito ligadas. A temática da
fragmentação, por exemplo, está muito presente no que escrevo. Os dois últimos livros,
Geografie d'ombra e Pedaços/Pezzi (principalmente neste último), são
praticamente uma reflexão sobre um momento de excepcional fragmentação da realidade que
vivemos. É a nossa condição hoje, aliás, quase a perda da nossa condição humana: o
ser visto como peça de sistema, sigla, número. Na televisão, nas imagens publicitárias
que nos bombardeiam diariamente, o ser humano quase nunca é visto na sua integridade. Ao
contrário, os seres aparecem fragmentados: são pernas, bocas, seios, olhos, cabelos,
terrivelmente desconexos.
A tal propósito, o poeta Manoel de Barros afirmou numa entrevista: "Necessidade de
reunir esses pedaços decerto fez de mim um poeta. (...) Ficar montando, em versos,
pedacinhos de mim, ressentidos, caídos por aí, para que tudo afinal não se disperse. Um
esforço para ficar inteiro é que essa atividade poética."
Um poeta que levou às últimas conseqüências essa espécie de esquizofrenia imperante
foi Fernando Pessoa, multiplicando-se em outros poetas, tentando dar unidade e coesão a
esse tantos estilhaços do seu ser. Só que hoje, talvez nem mesmo a sua heteronimia seria
praticável. Porque em Pessoa, existe um centro íntegro de consciência que controla, que
dirige o espetáculo dos tantos estilhaços do "eu" em ação. Hoje a sociedade
consumística visa desintegrar até mesmo esse núcleo de consciência e lucidez: para que
os pedaços de nós não se conjunjam mais, para que o ser caminhe longe de si mesmo,
alienado da sua consciência. Hoje o jeito é pôr nos livros os fragmentos, porque é o
que o poeta tem nas mãos.
Mas a poesia busca unidade, a poesia quer unir os fragmentos do nosso próprio mundo.
Mesmo quando o poeta está trabalhando com estes fragmentos, ele o faz para que se tenha
consciência dessa pulverização imperante: o poeta sonha recompor o todo.
Costuma-se dizer com certa constância
que a literatura está em crise, que a poesia estaria caminhando para a mudez ou para a
simples ecolalia, com o desfazer-se do verso, reduzindo-se a uma expressão de códigos
direcionada a número cada vez menor de iniciados. O que você diz a respeito? Qual o
futuro da poesia?
A poesia está de fato em crise. Não por falta
de criadores, mas por falta de leitores. Isso tem a ver com o que foi dito acima. Tudo, em
nosso quotidiano, trama contra a nossa integridade, contra a consciência das forças,
sobretudo econômicas e políticas, que condicionam a nossa existência. A poesia luta
contra isso, é resistência, é o resgatar o que estamos perdendo da nossa humanidade.
Fazer poesia é tentar sobreviver com a nossa sensibilidade, com a nossa fragilidade. Sem
contar que a poesia é um instrumento cognitivo fundamental. Hoje, afirmou o poeta Mario
Luzi, a poesia é ainda mais importante do que em qualquer outro momento da história,
porque nunca o homem esteve tão próximo da sua autodestruição. Mas ela não é uma
opção fácil, sobretudo num país como o Brasil. Augusto de Campos afirmou, numa
entrevista ao Jornal da Tarde (24/4/80): "Ser escritor no Brasil, já é
difícil. Ser poeta, uma obstinação tão sem remédio e sem compensações, que só
mesmo acreditando, como Fernando Pessoa, cumprir informes instruções do Além. De
qualquer modo, ser poeta para mim é inelutável. A flor flore. A aranha tece. O uirapuru,
nun fundo da floresta, toca uma vez por ano a sua flauta, para ninguém. O poeta poeta.
Quer o vejam, quer não, ele pulsa. O pulsar quase mudo". É muito eficaz esse
depoimento, pois mostra bem o sentimento de quem faz poesia no Brasil, com teimosia e
obstinação. Sinto o peso, como muitos, dessa incomunicabilidade, o desgosto de quase
não achar canais de publicação, a desilusão de receber, de volta pelo correio, os
manuscritos de livros em que trabalhamos anos, sem nem sequer sinal de que tenham sido
folheados pelos editores.
Um país tem direito aos seus poetas. Mas um país tem que merecê-los, assim como os
poetas têm que merecer o próprio país. Acho que neste momento os jovens poetas
brasileiros estão desesperadamente buscando o país que têm, o país que querem ter.
Estão mandando mensagens de náufragos, sinais que chegam muitas vezes pelo correio, ou
por outros meios, sinais de que estão vivos. A escuridão nunca fez bem a ninguém, o
subsolo sufoca até a melhor semente, se não a deixam crescer.
Visto que a poesia não se instaura
simplesmente a partir de significações que pairam abstratamente no ar, mas de modo
especial pela combinação de significantes no plano sintagmático, como foi e como está
sendo a sua experiência poética diante do bilingüísmo?
Essa vivência concomitante de duas realidades,
duas línguas, gera inevitavelmente muitos conflitos. A poesia exige um grau de
especialização muito grande e uma aderência às formas, e às relações entre essas
formas. Um poema não se improvisa, como se sabe. O poeta pesquisa sempre, depura,
condensa a linguagem, buscando - não qualquer palavra - mas a única que possa
"desentranhar" o indizível. A minha perplexidade maior é justamente como
realizar tal projeto, e bem, em duas línguas. Não por uma opção, mas por uma
contingência existencial. Comecei escrevendo em português, e nesta língua publiquei um
primeiro e breve livro de poesias (A porta range no fim docorredor,
São Paulo, 1983). Depois, por circunstâncias várias, passei a viver na Itália e a
utilizar quotidianamente o italiano, a pensar, a escrever nesta língua. Com o tempo, o
italiano se insinuou como língua literária alternativa para a poesia, que até então
tinha elegido exclusivamente o português. Desta esquizofrenia lingüística nasceram os
dois livros sucessivos, Geografie d'Ombra e Pedaços/Pezzi, com poemas
escritos em italiano e em português.
Aceitar o fato não foi fácil, mesmo porque eu vivia em modo negativo essa dicotomia
lingüística, achando que a minha própria poesia estava ameaçada. Um pintor pode
continuar a pintar em qualquer lugar esteja, em qualquer país ou realidade cultural ele
se encontre. A linguagem figurativa é quase sempre uma linguagem universal. O mesmo
ocorre com a música, mas não com a literatura. O código literário é muito mais
complexo, pois pressupõe o domínio completo de uma língua, dentro da qual a literatura
é só um dos modo da expressão e da comunicação. E existem determinados conteúdos
culturais intraduzíveis.
Entre o português (e aqui naturalmente me refiro ao português na sua variante
brasileira) e o italiano, existem diferenças marcantes e fundamentais, que revelam
posturas existenciais distintas. O Brasil é um mosaico de povos e de tradições
culturais díspares e o português é, e sempre foi, um dos principais elementos de
integração e de coesão entre os pólos desta complexa geografia humana e cultural.
O italiano tem uma história completamente diferente. Como se sabe, era originalmente a
língua da região Toscana, que se impôs, pelo prestígio cultural, ao resto da Itália.
Acontece que boa parte dos italianos continua usando o próprio dialeto em família, com
os amigos, reservando o italiano para as situações mais formais. Talvez esteja aqui a
origem dessa sensação de assepsia afetiva que nos causa a língua italiana, assim como a
dicção por vezes demasiada refinada e áulica que contamina também as formas da língua
falada. Não é um caso se hoje poetas importantes (v. a entrevista com Franco Loi) elegem
o dialeto como língua da poesia, porque língua dos sentimentos e ao mesmo tempo da
concretude, língua da relação direta com as coisas e com o mundo. Desta forma, o
bilingüísmo acaba sendo a condição de muitos italianos e esse é um dos aspectos
problemáticos deste país, já que a relação entre os dialetos e o italiano é difícil
e muitas vezes conflitante. Em tal contexto, a minha situação de bilingüísmo acaba
sendo quase normal. Aliás, vários poetas italianos recorrem à auto-tradução
(dialetos/italiano, ou vice-versa).
Agora, existe um outro aspecto (e este, creio, positivo) nesse alternar-se de dois
códigos lingüísticos: a desautomatização que o fenômeno gera. Quando se passa de uma
língua para a outra, depois de um período de ausência, voluntária ou não, saboreamos
de novo os sons, a musicalidade palpitante de um vocábulo, de uma frase, a harmonia ou a
rispidez de uma frase, a surpresa latente que só a distância pode gerar e cultivar.
Substantivos e verbos perdem o anonimato do automatismo. É natural que os falantes de uma
língua acabem perdendo a sensação muitas vezes de "alumbramento" provocada
por uma palavra pronunciada ou ouvida pela primeira vez. Os poetas e artistas são capazes
deste olhar estranhado, mas é necessário um aprendizado, uma educação interior, para
se chegar a esse resultado.
Descobri, quase sem querer, que essa condição em que me encontro, dividida entre dois
mundos, apesar de toda dilaceração que comporta, carrega em si essa possibilidade de
potencializar o estranhamento, que é a própria raiz da arte e da poesia (Miró, para
conseguir esse efeito na sua pintura, aprendeu a desenhar com a mão esquerda).
Para encerrar, fale-nos a respeito de
projetos em andamento e de novas publicações.
Tenho um livro inédito de poemas, cujo título
é Tempo de doer. Tem por tema a dor, a dor do ser vivo, até das coisas e das
pedras. Aliás a dor é para mim um tema recorrente. Nunca pude entender o sofrimento,
aceitá-lo. E todavia estou consciente de que a vida brota da dor e que tudo o que
fazemos, o que aprendemos, nosso processo de crescimento, é eivado de ânsias,
incertezas, sofrimentos.
Tenho muitos projetos, entre os quais o de um livro trilingüe
(italiano-português-espanhol) em co-autoria com Gladys Dazza Basagoitia, escritora
peruana de grande intensidade e visceralidade, que vive na Itália há vários anos, por
questões políticas. Serão auto-traduções e traduções recíprocas publicadas,
contemporaneamente, nas três línguas. Mas é um trabalho que procede em modo lento, não
sei bem porquê. É como se, neste esforço, a gente tivesse medo de se dispersar ainda
mais.
Neste momento, além da tese de doutoramento, estou trabalhando em um novo libro, que se
chamará Pássaros convulsos. Estou de novo vivendo uma grande inquietação, uma
busca de contato com o que existe de intenso e verdadeiro, concomitante ao impulso sempre
mais forte de refletir sobre a história, destrinçar seus fios, de virar do avesso
sistemas, leis, ideologias que marcam de violência nossa existência.