Poesia
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Conheci a poesia da Vera Lúcia de Oliveira graças ao Antonio Manoel, na sua coluna "Quase Desconhecidos", aqui no Vitrine. Quando li os comentários dele sobre "Tempo de doer", pensei na hora, "quero mais". Passou-se um tempo, a Vera entrou em contato, queria o e-mail do Antonio Manoel, acabamos trocando mensagens e comecei a ler mais sobre mais esta paulista/italiana (preciso também ler mais dela). É interessante ver como ela lida com realidades tão diferentes quanto o interior de São Paulo, onde nasceu, e o primeiro mundo da Itália, onde teve que “renascer”. Duas coisas me intrigaram muito, à medida que fui conhecendo melhor a Vera. Primeiro, a gentileza – genuína – na troca de mensagens. Segundo, a capacidade dela de juntar prêmios, lá e cá. Aí, resolvemos fazer uma entrevista, para ver se juntava as coisas. E ficou tudo claro: a Vera sabe muito bem do que fala. E fala muito bem do que sabe.
Fazer poemas é participar da gênese do mundo
No dia primeiro de novembro foi entregue em Roma o Prêmio Internacional de Poesia Pier Pasolini, dedicado a poetas que escrevem em italiano. Pela primeira vez na história, entre os premiados havia alguém de outro país. Era Vera Lúcia de Oliveira, autora de "Verrà l’anno", considerado um dos três melhores livros de poesia publicados na Itália em 2005. Não é só lá que sua poesia faz sucesso. Este é o segundo prêmio dela este ano. No primeiro semestre, seu livro inédito "Entre as junturas dos ossos" venceu o Concurso Literatura Para Todos, do MEC. Em 2005 já tinha ganho o Prêmio da Academia Brasileira de Letras, com "A chuva nos ruídos". Vera Lúcia nasceu em Cândido Mota e cresceu em Assis, no interior de São Paulo. Fez Letras pela UNESP, mestrado pela Università degli Studi di Perugia e doutorado pela Università degli Studi di Palermo, na Itália, onde vive há quase 25 anos na Itália: ensina Literatura Portuguesa e Brasileira na Università degli Studi di Lecce. Depois de meses de troca de mensagens (em que a Vera Lúcia sempre foi de uma gentileza rara entre os premiados), saiu esta entrevista, que a gente tem o prazer de dividir com vocês. Ah, na foto da Vera aqui em cima, o fundo é a fachada de uma igreja de Lecce, onde ela trabalha. "Chama-se Basilica di Santa Croce, e é uma das grandes obras de arte deste pais, alias umas das mais belas!" Repararam no ar feliz e à vontade com que a Vera trata a lente? O fotógrafo é o marido, Claudio Maccherani. Vamos à entrevista: INTERVISTA
Acho que todo autor trabalha com a memória, que é uma reserva de vida que temos, uma vida roubada à morte. A literatura e a arte nasceram para roubar, da morte, a vida e a poesia, nisso, vai fundo. O tempo presente é, sim, a nossa matéria, como diz Drummond, mas o tempo presente de cada um, que passa pelo próprio corpo. Não é um tempo presente genérico e abstrato, que não vivemos. É o tempo das escolas que freqüentamos, é o país em que nascemos, é a família que temos, e assim por diante. E isso não se dá por egoísmo, por estarmos centrados só no nosso pequeno mundo, mas porque é o que podemos conhecer melhor, é onde podemos penetrar com todos os sentidos, esmiuçar com a nossa razão. Ninguém – por mais que queira - pode entrar na consciência do outro, olhar lá dentro, ver como essa pessoa sente as coisas, como vê realmente o mundo. Temos só nós mesmos, somos nossas paredes e, para quem tem curiosidade de entender profundamente o ser humano, somos nossas cobaias. Então, por isso, a poesia acaba sendo auto-centrada, porque o poeta, esse cientista da alma, só tem objetivamente, como objeto de análise, o seu corpo e a sua alma. O resto são hipóteses, desejo de conhecimento, curiosidade, paixão pela vida e pelas pessoas. Mas ninguém pode garantir que nossas percepções correspondam mesmo à verdade das coisas. Uma amiga, lendo o meu último livro, No coração da boca (Escrituras, São Paulo, 2006), disse ao marido, que é o Carlos Machado, também grande amigo: “A Vera é especialista em gente”. Achei isso bonito, não sei, me deu muita alegria. Porque se tem uma coisa que me interessa são as pessoas, as que fui encontrando e as que ainda vou conhecer. Então, para retomar sua questão, sim a memória que eu recupero, a minha e (espero) a de tantos outros, são minha matéria de poesia.
Se eu me isolasse, não escreveria mais. Interessa-me o mundo, interessa-me a vida, toda a vida, desde a dos insetos até a dos deuses. Sempre gostei das grandes cidades, porque posso observar sem ser observada. Ando pelas ruas, olho, presto atenção, vejo tanta coisa. Há tanta fome no mundo, não só fome de comida, fome de atenção, fome de carinho, fome de revolta, de religião, de calor humano, de felicidade. Uma amiga me disse, várias vezes, que não posso fixar-me na observação só da tristeza. Refleti sobre isso, de fato acho que não vejo só a tristeza e que desejo, também, ver a felicidade e a beleza, vê-las e senti-las em mim e nas pessoas com quem vivo e mesmo nas que nem conheço. Acontece que Deus me deu um ouvido, que ouve certas coisas, um ouvido que capta essa fome que as pessoas têm, essa carência sempre de tanta coisa. Lendo o Inferno de Dante, vi nele a descrição do nosso mundo, esses “dannati” infelizes somos nós, são os homens de todos os séculos que foram feitos para desejar o que não podem ter. Tenho um ouvido que ouve essas coisas, mesmo tapando-o com as mãos, como fazia quando era menina, continuo ouvindo, porque ouço dentro. Então, a poesia é só um jeito da gente lidar com a vida, de não se queimar demais com ela. De certa forma, é uma compensação. No momento em que nasce o poema, participamos da gênese do mundo.
Meu conhecimento não é tão imenso assim, há muita coisa que aprender, não estou nem na metade... No entanto, não, o que sei não me inibe. São dois planos diferentes, uma coisa é a criação poética, para mim quase uma iluminação, uma manifestação do sacro, outra coisa é o trabalho racional do pesquisador, do professor e do crítico. Quando escrevo, não penso nesta ou naquela teoria, é tão intenso e forte o momento criativo que ele cria a si mesmo e me cria também. A matéria, a poesia inventa sua própria forma. Não inibo, não censuro a priori, não deixo que a crítica literária interfira, determinando o que pode ou não poder ser poesia. Sou como as mães, a maioria das mães, que aceitam um filho mesmo raquítico, magricela. Depois, é claro, mas muito depois, faço a seleção. Ai entra a figura do pai, que impõe o que fica, o que não fica. Brincadeira à parte, sei que muitos colegas, bons poetas, deixaram que o lado do professor abafasse o lado criativo. Em mim, se deu o contrário, o lado poético acabou determinando o meu modo de ler e mesmo de ensinar literatura. Vai ver que este era o lado mais forte....
Não há regras, ou seja, há regras, mas não válidas para todos. Há poetas que se espraiam pela página, grandes poetas barrocos na forma, que deixaram obras maravilhosas, e outros que têm necessidade de comprimir, enxugar, deixar na página quase que só o silêncio e um ponto final, para dizer que terminaram o poema. Cada um tem que achar a sua dimensão, e isto é determinado pelo que deve ser expresso, é a matéria que forja sempre a forma, não o contrário. O importante, num poema, é que tudo sirva, tudo seja útil e tenha a sua função. Se sobrar palavras, não presta.
Sim, como disse, poesia é uma espécie de epifania, de encontro com uma energia misteriosa do mundo. Quem escreve e sente a poesia, profundamente, sabe que Deus existe, não importa como queiramos chamá-lo ou defini-lo. Meu marido é ateu, eu lhe digo, ao contrário, que não posso deixar de crer que há um ser supremo. Toco, de certa forma, qualquer coisa de sua esfera, quando nasce um poema que sinto que está dizendo o que precisa ser dito, nem mais, nem menos.
Ah não, não fazia idéia de tudo o que ia viver. Sempre fui muito nômade, desassossegada, como diria Pessoa, e tinha vontade de viajar, conhecer mundos e pessoas. Fiz isto por mais de dois anos, andei por toda parte, com alguns intervalos de estudo na Itália, fui de um país para o outro, com pouquíssimo dinheiro. Nunca viajei sozinha, pois não sou assim tão corajosa, combinava com amigas, meio loucas como eu. Viajávamos de trem, dormindo num país e acordando em outro. Foi um período em que sentia realmente que era cidadã do mundo, dona do meu destino. Mas essas coisas a gente faz por um certo período, quando tem idade para fazê-las, depois tem que retomar estudos, trabalho. Foi o que fiz, indecisa por algum tempo. Depois me casei, passei a viver na Itália, ainda sem plena consciência dos problemas que enfrentaria, pois não viveria mais como viajante ou turista, mas enfrentaria o dia-a-dia normal, rotineiro. Foi aí que surgiram as dificuldades que encontram um estrangeiro num outro país, e tudo se complicou. Tive que recomeçar de novo, outra licenciatura, outro trabalho, outra vida... No Brasil, queria fazer o doutorado, e continuei querendo isso na Itália. Só que entrar num doutorado, na Itália, é coisa muito difícil (na época, por exemplo, só havia três bolsas de estudos por ano, para o curso que eu desejava, e sem uma bolsa era impossível continuar estudando). Eu punha tanta expectativa nisso que as pessoas, os próprios amigos, temiam por mim e me desencorajavam, dizendo para tentar qualquer outra coisa, que havia outras possibilidades em outros campos, que eu sonhava muito alto (mas, isso, diziam-no de forma delicada, claro). Não vou contar aqui todas as dificuldades, que foram tantas. Entrei mesmo num período de depressão, em que tudo parece que se desmoronou, não tinha mais energias para perseguir meus sonhos. Foi graças ao meu marido eu consegui sair daquele beco fechado. Com paciência, ele foi me puxando para fora. Fui retomando, aos poucos, os livros, fui caminhando, prestei concurso na Universidade de Palermo para o Curso de Línguas e Literaturas Ibéricas e Ibero-americanas, passei com bolsa (fui a primeira classificada), fiz a pesquisa do doutorado no Brasil e depois defendi a tese na Itália. O livro, resultado desse estudo, foi publicado pela Editora da Unesp e Edifurb, em 2000, com o título de Poesia, mito e história no Modernismo brasileiro, e saiu também na Itália. Prestei depois concurso na Universidade de Lecce, e hoje ensino ali, na Faculdade de Línguas e Literaturas Estrangeiras, com muita paixão pelo meu trabalho de pesquisadora. Publiquei depois outros ensaio, e este ano saiu o livro Storie nella storia: Le parabole di Guimarães Rosa (Pensa Multimedia, Lecce, 2006), que é um estudo sobre o livro Sagarana, a primeira obra desse grande escritor. Nunca deixei, nesse tempo todo, a escritura criativa, ora numa língua, ora na outra. Na semana passada, fui à cerimônia de entrega do Prêmio Internacional de Poesia Pasolini, em Roma, pois o meu livro, Verrà l’anno (Fará, Santarcangelo di Romagna, 2005), foi considerado um dos três melhores de poesia, publicados no último ano na Itália. Posso dizer que fiquei muito emocionada, e penso sempre em meus pais, nessas ocasiões, meus pais que lutaram tanto e me incentivaram nesse desejo, que sempre tive, de saber e de conhecer.
Não concordo. Acho até que, quanto mais passa o tempo, mais ele vai se tornar um objeto precioso. Um livro é o que fica, o que nós podemos tocar, manusear. A relação de quem lê com um livro é sensual, eu preciso senti-lo, e maltratá-lo quando é necessário, quando ele resiste à leitura e a gente tem que ficar com dicionários ou enciclopédias na mão, para poder entendê-lo. Tenho livros que carregam todas as marcas de que foram lidos várias vezes. Outros são delicados, precisam de espaço especial, tem o tempo certo para serem relidos. Um livro respeita o silêncio, nunca se intromete onde não deve. A Internet é um espaço de rumor, não de silêncio, serve só para a gente ir visitá-lo quando é preciso, para pesquisar alguma coisa que será aprofundada mais tarde, num livro, mas depois... a gente desliga, distancia-se. Pelo menos é assim para mim, preciso de muito silêncio para perceber melhor as coisas e o mundo.
A poesia existe mesmo sem os livros. Mas a gente tem que saber o lugar certo e as pessoas certas, onde ela se manifesta. Tem gente que é poeta na vida e na alma, que nem sabe escrever, mas que tem a poesia em si, nos gestos, no modo de ser, na paixão e no amor que põe em tudo o que faz. Outros nem sabem o que é poesia, vivem rasteiros, não levantam vôo, não são capazes de olhar para a magia de cada gesto, que nunca mais vai se repetir. Então, se uma pessoa tem este dom de ver ou de gerar poesia, e sabe detê-lo, sabe transformar os momentos intensos em palavras, cores, sons, isso é um presente para todos nós.
Sinceramente não sei, porém espero que não atrapalhe. O que sei, é que se uma coisa não consegue ser dita por mim em uma língua, mais cedo ou mais tarde ela volta na outra. Há vários estudos sobre isso, sobre este aspecto psicológico do bilingüismo e eu mesma já estudei esta questão em outros autores. Agora, o bilingüismo literário atrapalha na divulgação do que escrevo. No Brasil, só se interessam, quando se interessam, claro, pelos textos em português, e na Itália, pelos textos em italiano. Ultimamente, sinto-me um tanto dividida por isso. Não que o seja dentro, mas vejo que o sou fora, no modo como me lêem. Sei, no entanto, que estou fazendo sempre o mesmo percurso, de uma língua à outra, não sei ainda onde vou chegar, mas o caminho é esse. Neste momento, não há outro.
Não sou feliz nem infeliz, talvez esteja na média, como tantas pessoas. Vejo, porém, muita mais infelicidade do que o contrário. Outro dia, estava dizendo a meu marido, meio brincando e meio seriamente, por que as pessoas felizes não saem cantando pelas ruas, por a gente não vê as pessoas contentes, sorrindo, abraçando-se de felicidade, quando estão alegres? Mas vê, e muito mais freqüentemente, gente sofrida e infeliz, frustrada, maltratada pela vida, pisada até pelos próprios parentes. E estas pessoas carregam no rosto a infelicidades delas. Ele me respondeu que as pessoas têm medo de ser feliz, e talvez tenha razão. De qualquer forma, a tristeza é necessária só para nos fazer perceber a diferença, para nos fazer valorizar o encanto dos momentos de graça.
Gosto muito da palavra “maresia”. Acho-a poética, mágica. Há muitas outras palavras que amo da língua portuguesa, que repito às vezes dentro de mim, e que ficam ecoando. Da língua italiana, uma parecida (pelo contexto marinho), é “salsedine”, também muito linda. Uma não é tradução da outra, aliás não há tradução perfeita desses termos, de uma língua para a outra, e é uma pena, pois ambos sugerem poesia. Paulo Rezende, Novembre 2006 Inizio pagina corrente Poesia Pagina iniziale (by Claudio Maccherani ) |