Poesia & Poesia
Poesia bilingue - italiano e portoghese brasiliano.
Vera Lúcia de Oliveira (Maccherani)
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Vera, foto Claudio Maccherani, 2002

Intervista 04
Um olhar na poesia

Entrevista com
Vera Lúcia de Oliveira
(Maccherani)
de
 Donizete Galvão
2002

publicada na Revista
"Orpheu  digital" n°.5, 2002
http://www.orpheu.com/n5/ 
[non più online]

 

"Sonhos" - Caetano Veloso

 

  1. Onde você nasceu e quais são as primeiras recordações da infância?

Nasci em Cândido Mota, uma cidadezinha do interior de São Paulo. Nasci ali quase por acaso, pois naquele tempo meu pai trabalhava na empresa elétrica da região e ia de uma cidade para outra, para onde o mandavam, com mudança e família. Era uma vida nômade e minha mãe sofreu muito com isso. Acho que é por isso que ela hoje detesta viajar.
Em casa, cada um dos meus irmãos (somos em cinco) nasceu numa cidade diferente e tenho poucas lembranças deste período. As primeiras imagens que guardei foram de Assis, outra cidade do interior paulista, para onde a família se fixara finalmente, acho que em 1963.
Lembro-me nitidamente de um pé de maracujá, que tínhamos no quintal, suas folhas verdes, suas flores intensas, que pareciam bocas, ou olhos, e abelhas no seu barulhinho de viver, um céu azul, um vento macio e quente. Acho que foi a primeira epifania, a revelação da vida, de uma capacidade de sentir e de saber o que eu estava sentindo. E tudo isso brotou de uma concretude de coisas acontecendo, de uma visão e de um contato físico com o que estava ao redor. Parece que nasci de fora para dentro, que foi a vida que me acordou para vivê-la e vê-la. Depois foi que me descobri.

  1. Como a poesia entrou em sua vida? O que lia na adolescência?

A poesia entrou assim, dessa revelação. Já estava dentro quando eu comecei a pensar em pôr no papel alguma coisa. Mas na verdade, eu não comecei escrevendo versos. Escrevia um diário, e pequenas estórias que ia inventando, de animais, crianças. E lia muito, ou seja, inicialmente lia o que achava para ler. Em casa não tínhamos muitos livros. Eu comecei mesmo a ler de tudo foi na escola. Era uma escola de periferia, mas muito boa, com professoras que consideravam o ensino uma espécie de vocação. Eu tive uma professora que me deu vários livros de presente. A cada bimestre, ela dava um livro para o melhor aluno. Foram os primeiros livros da minha biblioteca.
Eu amava a literatura de maneira visceral. Comecei lendo tudo de José de Alencar, passando para outros escritores da literatura brasileira, como Machado de Assis, Graciliano Ramos, Érico Veríssimo e tantos outros, até a grande encontro com Guimarães Rosa. Não tardei em descobrir a literatura portuguesa, a francesa, a norte-americana, a russa, sobretudo Tolstoy, Cechov e Dostoevskij, escritores que me marcaram profundamente. Amava conhecer também a história dos povos, os seus costumes e tradições, a arte e a filosofia que caracterizavam os vários períodos da civilização.
O encontro com a poesia, deu-se mais tarde e penso que isso foi devido ao tipo de enfoque literário que caracteriza as nossas escolas, que dedicam bem pouco espaço à poesia. Uma professora me disse uma vez que a poesia era a mais complexa das artes e que era necessário conhecer muito bem toda a métrica para compor um poema. Isso me levou a esconder os meus papeizinhos rabiscados de versos e me distanciou da poesia por vários anos, pois não me sentia preparada para esta arte.

  1. Dê uma panorâmica sobre a sua formação universitária

O período da minha formação básica coincide com os anos de maior arroxo da ditadura, o que não impediu que, já no colegial, estudássemos as ciências humanas, principalmente a filosofia, a psicologia, a sociologia, sob a guia de professores que nos ajudaram a refletir sobre a nossa realidade. Foram anos exaltantes, pois parecia que estávamos resistindo e lutando para ver e conhecer o que nos era vedado. Lutando para estudar.
Eu tinha boas notas em quase todas as matérias e, no último ano do colegial, apresentou-se o problema da faculdade que eu deveria escolher para a continuação dos estudos. Hesitei entre filosofia e letras, mas acabei optando pela segunda, que me daria a possibilidade de estudar também as línguas estrangeiras, que me interessavam.
Prestei o vestibular na Faculdade de Ciências e Letras da UNESP - Campus de Assis, um curso que tinha e tem longa e prestigiosa tradição, fundado por professores famosos, como Antonio Candido. Foi ali que eu comecei a estudar o italiano. Sou neta de italianos, por parte de mãe, mas desta língua não sabia que poucas palavras e, da Itália, tinha as imagens transmitidas por minha avó, siciliana, que me contava longas histórias da sua terra, e que sabia fazer um doce de laranja que nunca mais experimentei em nenhum lugar, nem mesmo na Sicília, que mais tarde tive ocasião de visitar.
Então, comecei com o italiano como segunda língua, mas me apaixonei tanto por este idioma que abandonei o inglês no terceiro ano e continuei só com o italiano. Não foi uma escolha fácil, todo mundo me perguntava o que eu iria fazer com o italiano, pois era uma língua que não proporcionava muitas perspectivas de trabalho. Mas eu sempre fiz tudo na vida por paixão, sem pensar, sem programar. Isto muitas vezes me causou problemas. E depois, acalentava o sonho de conhecer a Itália, sonhava com este país. Quando terminei o curso, soube que o Instituto Italiano de Cultura estaria dando, naquele ano, dez bolsas de estudo. Participei da seleção e obtive uma das dez. Aí começou uma nova aventura. E fiquei felicíssima porque a Universidade para onde eu iria era em Perugia, na Umbria, uma cidade grudada em Assis, mas a Assis italiana de São Francisco. De Assis para Assisi.
Passei a viver em Perugia. Estudei, viajei, conheci o que seria o meu futuro marido, fiquei um período entre o Brasil e a Itália, na maior laceração e dúvida e depois, como não dava para ficar com um pé aqui outro lá, tive de escolher. Então, recomecei a estudar. Aliás, continuei, porque eu nunca tinha interrompido. Inscrevi-me de novo na Universidade e fiz o curso de Línguas e Literaturas Estrangeiras Modernas, na Universidade de Perugia. Depois, como já estava embalada, resolvi fazer também o Doutorado, que concluí em 1997.

  1. O que despertou seu interesse pelo italiano

Embora, como disse, seja neta de italianos, acho que o meu interesse por esta língua tenha origem no grande amor pela poesia de Ungaretti. Descobri este poeta na Faculdade de Letras. A gente tem desses encontros na vida. Foi uma outra epifania. De repente, vi realmente o que era a poesia. É claro que tive também outros encontros poéticos de grande relevância, como o com Bandeira, Drummond, Pessoa, mas com Ungaretti o encontro foi também com a língua, o instrumento de poesia que ele utilizava.

  1. Como é o seu trabalho em Perugia?

Olha, eu acho que era destino que eu fosse uma pessoa nômade, desde que nasci. Vivo entre o Brasil e a Itália. Mas não basta. Na Itália, vivo entre o centro e o sul, pois moro em Perugia, no centro, e ensino na Universidade de Lecce, no sul. Em Lecce, ensino Língua e Literatura Portuguesa e História da Cultura Brasileira. E gosto muito deste trabalho, gosto de falar da nossa literatura e da nossa cultura para os alunos. Eles vêm com certas idéias estereotipadas do Brasil, tudo carnaval, samba, mulatas. Pensam que tudo é alegria, que os brasileiros estão rindo desde que se levantam da cama. Com poucas exceções, não têm a percepção dos nossos problemas. Então, através da literatura, da leitura dos grandes escritores, e também através da música, elas vão descobrindo o Brasil, mas um Brasil complexo, contraditório, onde o belo e o sublime convivem com a miséria das favelas. Tudo isso é o Brasil.
Também trabalho como tradutora e interprete, quando posso. Já trabalhei como interprete em vários eventos realizados na Itália, entre os quais o Campeonato do Mundo de Futebol de 1990, onde fui uma das quatro interpretes da Seleção Brasileira. Foi uma experiência interessante, era um mundo, este, que me parecia irreal, onde tudo era exagerado, desproporcionado.

  1. Descreva-nos suas impressões sobre Perugia e a Itália.

Perugia é uma cidade muito bonita e também muito antiga. Quando saio de casa, caminho por ruas medievais, atravesso vielas romanas, passo sob arcos etruscos, entro em igrejas barrocas, olho fachadas românicas, janelas góticas, colunas neoclássicas. Você toca o passado, caminha sobre o passado, respira o passado. No começo eu ficava com a sensação de estar fora do tempo, de poder ouvir as vozes de tantos que aqui viveram, lutaram, morreram. E viram o que eu estava vendo agora. E eu observava as pessoas, acostumadas com tudo isso, que viviam com essa dimensão da história que nos falta, a nós brasileiros. Nós somos geográficos, eles são históricos. Eu não me cansava de admirar tudo isso. A Itália inteira é assim, cada cidade, cada rua onde a gente se encontra e se perde. Isso me deu uma outra maturidade, uma outra visão da vida e do mundo. Fiquei mais complexa e mais completa, acho. Perdi uma coisas, ganhei outras. A gente tem a sensação da precariedade do ser humano, mas ao mesmo tempo do desafio que ele lança a todo momento contra o tempo, contra a morte. Ele passa, o que ele faz, se é uma obra de arte, se conseguiu captar uma cintila de eternidade, fica.
Gosto muito da Itália, com todos os defeitos que tem. É um pouco como o Brasil e eu gosto muito do Brasil, também com seus defeitos. Mas são dois países muito diferentes. Nós pensamos, geralmente, que temos muito em comum com os italianos. Quando se passa a viver neste país, você descobre o muito em que se difere. É um outro universo cultural, outro modo de ver o mundo. Mas isso seria uma conversa muito comprida para uma entrevista. Eu, no entanto, sinto-me sempre dividida. Estou no meio, meio chegando e meio partindo. Sabe as andorinhas?, quando vem o inverno, têm de partir. Isso chega a ser uma dor, quando não é uma alegria...

  1. Como foi sua estréia na poesia? O que publicou primeiro?

Em todo esse período, não deixei de escrever. Já nos últimos anos do Curso de Letras, obtive alguns reconhecimentos que foram então significativos para mim. Em 1981, recebi um terceiro prêmio, pelo conjunto de 10 poemas, num concurso de poesia promovido pelo Teatro do Bexiga e pela Secretaria de Cultura de São Paulo. Em 1982, obtive o primeiro e o quinto prêmios num concurso de contos do Centro de Estudos da Faculdade de Letras de Assis. Finalmente, em 1982, fui a primeira classificada no "I° Concurso de Poesia Scortecci 1982", São Paulo, e obtive a publicação do meu primeiro livrinho, A porta range no fim do corredor, em 1983, um livro que não tinha mais do que trinta poemas. A publicação e o lançamento do mesmo coincidiram com a minha partida para a Itália, de forma que não pude recolher, como desejava, os frutos, positivos ou negativos que fossem, que esta experiência de contato com o leitor me propiciava. Mesmo assim, pouco tempo depois, uma amiga me enviou o artigo "Poesia feminina entre o mosaico lírico e um mundo sem musas", publicado na Folha de S. Paulo (01/07/1984, p.60), em que o Cacaso comentava o meu pequeno livro.
Depois, na Itália, por um ou dois anos não escrevi nada. Estava deslumbrada com a nova vida que estava vivendo, com as coisas que estava descobrindo. Além disso, eu queria falar do que estava vendo, das pessoas que encontrava, das experiências que tinha, mas tudo parecia misterioso, sentia que ainda não conhecia aquele mundo, não conseguia interpretar as expressões, a própria gesticulação das pessoas. Olha, não basta saber a língua, você precisa conhecer bem a cultura para entender profundamente uma pessoa, seu modo de pensar. E é preciso pensar a partir daquela cultura para poder aceitar certos comportamentos, que vistos de fora podem parecer estranhos. É isso que distancia os homens, porque as pessoas julgam a partir dos próprios valores, sem pôr-se na pele do outro. Por isso existe tanto racismo por toda parte, também no Brasil, onde a sociedade está muito estratificada e dividida.
Então, por este estranhamento que eu sentia, fiquei um bom tempo sem escrever. Depois, retomei a escritura, mas faltava-me o leitor, o diálogo com o outro, porque poesia é também e, sobretudo, comunicação. Foi aí que a língua italiana, aos poucos, foi-se insinuando para mim como língua de poesia, língua de escritura. Nasceu o primeiro libro, da série que a crítica e grande amiga Luciana Stegagno Picchio definiu "bilingüe", porque parte dos poemas eram escritos em português e parte em italiano: Geografie d’ombra (Fonèma Edizioni, Venezia), publicado em 1989, seguido de Pedaços/Pezzi (Editora L'Etruria, Arezzo), de 1992, de Tempo de Doer/Tempo di Soffrire (Pellicani Editore, Roma), publicado em 1998 e, por fim, La guarigione (Edizioni La Fenice, Senigallia), publicado em 2000, escrito, este último, inteiramente em italiano.
O uso do italiano como língua de poesia, ao lado do português, foi inevitável, pois esta era então a língua do meu quotidiano. Mas no começo, confesso, foi um choque. Eu achava que iria perder a minha língua e não podia aceitar aquilo. Depois vi que não corria este risco, que a língua em que você nasceu, cresceu, viveu as primeiras experiências, viu o mundo pela primeira vez, é por excelência a sua língua de poesia. É a língua da revelação da vida e do mundo. É algo de muito radicado e a maior parte dos meus poemas são escritos em português.
Além disso, o português, principalmente o brasileiro, é uma língua suave e delicada. Nós brasileiros não nos damos conta disso, não apreciamos devidamente o que temos. O português é riquíssimo para exprimir toda uma gama muito complexa de sentimentos. Quando você começa a conhecer outras língua e a comparar, percebe isso. O italiano, por exemplo, língua também muito rica, bela e poética, não permite – como o português – esta mesma maleabilidade. Sabe porque? Porque os italianos para certas coisas, para exprimir certos conceitos ou sentimentos, utilizam o dialeto. É o fenômeno da diglossia, para não dizer bilinguismo. Nós não, com a mesma língua dizemos tudo. Isto está ligado, é claro, à história dos dois países. Os italianos sempre tiveram esse problema da sobreposição, da convivência difícil entre língua e dialetos.

  1. Como você se sente publicando em duas línguas diferentes? Você escreve diretamente em italiano? Você imagina os poemas em italiano?

Sinto-me às vezes muito dividida, come disse. Mas, ao mesmo tempo, penso que isso me enriquece. Olha, tem certas coisas que só posso dizer em português e outras que só posso dizer em italiano.
Você me pergunta se eu imagino os poemas em italiano. Não, o processo é muito mais radical, eu sinto, vivo-os em italiano. Essa emoção intensa que é a poesia, quando o poema é em italiano, eu a vivo também em italiano. Da mesma forma, quando é em português. É difícil explicar. Não é possível viver, sentir profundamente algo numa língua e depois exprimi-lo em outra, não com a poesia. A racionalização da prosa permite isso. É por isso que uso o italiano mais na prosa e o português mais na poesia. Pelo menos até hoje foi assim, não é que eu generalize.

  1. Quais as diferenças e semelhanças que você vê entre as duas línguas?

Acho que já respondi a essa pergunta. O português brasileiro é muito mais afetivo do que o italiano. Veja, já no século XV isso foi sublinhado por um rei português, D. Duarte, no livro Leal Conselheiro. Ele tinha percebido esta característica do português, que então era uma língua que ainda estava se formando, quase nos primórdios, sem um escritor significativo de prosa, que será o cronista Fernão Lopes. Este rei, que era também um grande humanista, percebeu a riqueza do português para exprimir certos estados de alma, certos sentimentos, como a saudade (ele foi o primeiro a defini-la) que não tem tradução em outras línguas. E não tem tradução porque nem todos os povos têm os mesmos tipos de sentimentos. Podem ter outros, mas não este, não a saudade, por exemplo. Uma língua é sempre um universo muito complexo, é um modo de ver e interpretar o mundo. É uma perspectiva.

  1. Como você caracteriza sua poesia? Você sempre busca esta concisão e precisão vocabular?

A minha poesia nasce do meu embate, do meu contato com a realidade. Parte dessa relação, desse conflito, desse encantamento. Se eu me fechasse em um quarto, se me isolasse do mundo, não faria mais poesia. Não saberia do que falar, porque poesia para mim é viver, ver, observar, ouvir, tocar, sentir a vida por todos os poros, sentir as pessoas, ouvir o rumor que fazem enquanto vivem, bater o pé no chão e sentir a terra, roçar a asa de um pássaro que passa rápido, alisar um tijolo que reteve o calor do sol ou o frio da madrugada.
Se busco a concisão e a precisão? Sempre, porque a poesia tem de ser concisa e precisa. Não somo nefelibatas, como se autodefiniam os simbolistas, ou seja, pessoas que viviam nas nuvens. Este tipo de poesia se encaixava bem com a sensibilidade do final do século XIX, mas hoje tudo está diferente. Não dá mais para viver nas nuvens, nem os poetas querem mais isto.

  1. Como você estabeleceu seus contatos na Itália?

Foi aos poucos. Mandei os poemas para alguns concursos, recebi prêmios, conheci outros poetas. Enviava também trabalhos meus a várias revistas e tive a sorte de ser publicada muitas vezes, em boas revistas.
Depois, em Perugia, fui convidada para participar do Grupo de Pesquisa e Laboratório de Poesia Il Merendacolo, do qual sou membro-fundador, associação que, há mais de quinze anos, se dedica ao estudo e à difusão da poesia, com a participação e o testemunho direto de grandes poetas, nacionais e estrangeiros. Já o nome do grupo pode dar uma idéia da irônia com a qual encaramos as panelinhas, os "cenáculos" pomposos da história da poesia nas várias tradições.
Eu mesma entrevistei muitos dos poetas italianos entre os mais significativos, como Mario Luzi, Andrea Zanzotto, Valerio Magrelli, Vivian Lamarque, Paolo Ruffilli, Gianni D’Elia, Maurizio Cucchi, Franco Loi, e outros. A primeira série destas entrevistas saiu em 1999, no número 7 da revista Insieme, de São Paulo. Tenho um projeto de publicar um livro proximamente, com vinte entrevistas reunidas. Mas o trabalho é lento e pormenorizado. Não faço sempre as mesmas perguntas, cada poeta solicita, de maneira diferente, o entrevistador, com temas e problemáticas próprias.

  1. O que você tem a dizer sobre seu envolvimento com o trabalho de tradutora. Quais as dificuldades mais comuns? Quem você já traduziu?

Já traduzi vários poetas brasileiros, angolanos, portugueses e italianos. Agora mesmo vai sair uma antologia que organizei de Lêdo Ivo. Gosto de traduzir poesia, mas não qualquer poeta, evidentemente: só os poetas com os quais tenho alguma afinidade.
Tenho um grande respeito pelo texto na hora de traduzir. Dizem que todo bom tradutor é um pouco um traidor. Eu tenho dificuldade em "trair", quero sempre conservar ao máximo as riquezas e potencialidades do texto original. Por isso, passo tanto tempo em cima de um poema. Mostro para os amigos, que me dizem que está bom, que está bonito, mas não me dou facilmente por satisfeita. Até que chega um momento, mexe aqui, mexe ali, em que acho que o texto está respirando também na outra língua. Os italiano têm um ótimo termo para isso: pignoleria, que em português poderíamos traduzir com "pessoa minuciosa, capciosa", mas sem aquela ironia que tem o termo em italiano. Ficaria melhor talvez, como tradução, o termo "chato", exigente. Acho que sou assim, pignola, quando traduzo.

  1. Conhecemos um pouco da ficção italiana ( Gadda, Calvino e Tabucchi), mas muito pouco da poesia italiana contemporânea. O que tem sido produzido de interessante?

Uma das características marcantes da poesia italiana contemporânea é, além da sua vitalidade, a diversidade das vozes, algumas consideradas entre as maiores da poesia européia do século XX, como Mario Luzi, Giorgio Caproni, Andrea Zanzotto, Attilio Bertolucci, poetas tantas vezes indicados para o prêmio nobel. Mas se estes são os grandes "velhos" da poesia italiana, não menos significativa é a presença dos jovens. E existem, além disso, poetas que não pertencem propriamente às últimas gerações, mas que por vários motivos se tornaram conhecidos mais recentemente, como Alda Merini e Franco Loi.
As últimas décadas inauguraram um retorno da poesia, mas de uma poesia que tem como traço fundamental a retomada do eu lírico, a importância dada às instâncias do ser subjetivo, de suas experiências pessoais em contato e embate com o mundo.
Mas não existem linhas e grupos preponderantes ou mesmo escolas poéticas organizadas. Depois da experiência polêmica e contestadora das neo-vanguardas de 1960-1967, com os grupos Novissimi e Gruppo 63, em que se busca uma ruptura com a linguagem tradicional, condicionada pela cultura de massa, cada poeta passou a construir seu próprio percurso, sem abandonar a herança do passado, mas também sem se deixar condicionar excessivamente pela lição dos grandes mestres, como Ungaretti, Quasimodo, Saba, Montale.
E existe hoje um fenômeno interessante, a retomada e a revalorização da poesia em dialeto, a qual tem porém outra valência, que não a de uma "poesia folclórica" ou "poesia menor". Ao contrário, ela coloca-se no mesmo nível da poesia em italiano e retoma os grandes temas e os grandes problemas contemporâneos, com igual dignidade. Isso ocorre porque o dialeto, hoje, não é considerado mais só uma língua da realidade em senso menor, redutivo, como era visto até há pouco tempo. Existe uma grande transformação e um fecundo intercâmbio entre o italiano e o dialeto, porque, afirma um poeta e crítico contemporâneo, Gianni D’Elia, em uma entrevista que lhe fiz: "no cerne da poesia dialetal estão as coisas. Existe um reaganchar-se a uma poesia ligada aos sentimentos fortes da presença das coisas e da memória, que se impôs". Esta revalorização do dialeto, que se intensifica a partir dos anos 70, está diretamente conexa à tendência do "retorno da poesia", evidenciada por muitos críticos. O uso do dialeto em poesia acabou se revelando fundamental também para a poesia em vernáculo, pois muitas das características do primeiro foram mutuadas para o segundo, e vice-versa. Existe uma contaminação entre as duas formas que é rica de potencialidades. De fato, se alguns poetas, como Franco Loi, descobriram que para eles a única língua poética possível era o dialeto, porque língua materna, outros tentam extrair do dialeto sua espontaneidade, sua dinamicidade de língua falada, como Giorgio Caproni, cujos poemas são um diálogo ininterrupto com o leitor, a quem se dirige familiarmente, privilegiando um italiano oral, que muitas vezes acaba assimilando as formas dialetais. O interessante na poesia italiana contemporânea é que ela abandonou finalmente o tom elevado, saiu à ruas, desceu do seu pedestal. Essa é a sua maior riqueza, acho.

  1. Fale sobre os prêmios que você conquistou recentemente. Você pretende publicar estes livros em português?

Este ano passado foi profícuo para mim, pois obtive dois prêmios que considero importantes: o "Prêmio Nacional de Poesia de Senigallia" e o "Prêmio Nacional de Poesia Gino Perrone", de San Donato di Lecce. No primeiro caso, o livro La guarigione, resultado vencedor, foi publicado e lançado em Senigallia, em outubro de 2000. No segundo caso, o livro Uccelli convulsi está no prelo pela Piero Manni Edizioni. Participei e concorri com poetas da Itália inteira e acho que foi a primeira vez que estes prêmios foram para uma pessoa, cujo italiano não é a primeira língua. Eles até tiveram que explicar, no dia da entrega de um dos prêmios, que o livro vencedor tinha sido escrito em italiano e que estava, por isso, dentro do regulamento. Achei isso muito engraçado.
Em dezembro de 2000, recebi também o "Prêmio Literário Osilo", Seção "Poesia do Mediterrâneo", pela minha produção poética em português.
O livro Pássaros convulsos deverá sair também em português. Mas, veja, publicar no Brasil é muito difícil. É difícil já para quem está aí, batalhando editoras, quanto mais para mim, que estou longe quase a maior parte do ano. Mas eu sinto tristeza por isso, porque me considero autora brasileira. Gostaria de ter possibilidade de publicar e distribuir meus livros também no Brasil. Eu tenho feito alguns lançamentos no Brasil, mas como os últimos livros foram publicados na Itália, existe grande dificuldade em fazê-los circular também aí.

  1. Conte-nos como você escreve. Acredita em inspiração? Corta e modifica muito?

Eu não escrevo muito. Também não escrevo quando quero. Não sei se existe inspiração, mas existem certamente momentos em que sentimos de forma diferente certas coisas, vemos de modo diverso e compreendemos também mais do que em outros momentos. Isso seria inspiração? Prefiro pensar que é um momento de revelação, que a vida se deixa ver e perscrutar por nós. São raros momentos, em que conseguimos alguma compreensão profunda da complexidade do mundo e da beleza e da abrangência dos seres e das coisas. No meu caso, parto sempre do concreto, parto da minha relação, do meu vínculo com a realidade. É dessa aderência às coisas que nascem meus versos.
Alguns nascem prontos, ficaram trabalhando dentro, ou foram sendo elaborados, sem que eu me desse conta. Quando os escrevo, vejo que já estão terminados. Outros não, são apenas um esboço de poema, e eu mexo, reescrevo, e muitas vezes jogo fora. Outras vezes resisto e sai um poeminha que me parece bom. Então, é come se me nascesse um filho. Depois, deixo-o repousar um pouco, para criar uma certa distância com o texto e poder ser objetiva. Só depois posso dizer se o poema está pronto.
Mas eu, muitas vezes, não escrevo um poema isolado, escrevo um livro. Tenho uma certa idéia de um tema, que não se exaure em um único texto: são séries de poemas. Isso me dura algumas semanas ou meses, um poema vai chamando outro. Dessa forma nasceram, por exemplo, livros como Tempo de doer e La guarigione, e também o inédito Pássaros convulsos.

  1. Os poetas brasileiros têm uma grande identificação com a poesia de Ungaretti e Montale. A que se deve esta identificação, além do fato, é claro, de serem dois poetas de grande estatura?

Essa identificação se deve ao fato, como você afirma, de que são grandes poetas, entre os maiores do século XX. Com Ungaretti temos uma ligação especial, pois Ungaretti viveu no Brasil, foi amigo de muitos dos nossos poetas e intelectuais. Era amigo, por exemplo, de Oswald de Andrade e chegou a traduzir e publicar na Itália parte do Livro Pau-Brasil. E não existem dois poetas mais diferentes, em todos os sentidos. Ungaretti no Brasil viveu experiências que o marcaram profundamente, como a perda do seu filho, a descoberta da dor e da morte. Tem um crítico italiano, Oreste Macrí, que afirma que o sentimento da dor em Ungaretti é brasileiro. Então, é natural que Ungaretti tenha ficado no Brasil, tenha influenciado. E ele era uma pessoa até muito simpática, que sabia conquistar.
Montale entrou depois. Montale é um poeta seco, cabralino poderíamos dizer, nas não tão radical nessa secura quanto o nosso João Cabral. Pertence à série dos poetas anti-líricos do século XX, que romperam com a tradição, que inventaram algo realmente novo. Para Ezra Pound, poetas como esses são, de fato, "inventores", e são muito raros em todas as literaturas.

  1. Você ganhou um Prêmio Sandro Penna. Você gosta da poesia dele? Não pretende traduzi-lo para o português? Que poeta você tem vontade de traduzir e ver publicado no Brasil.

É, ganhei este prêmio em 1988, com um conjunto de vinte poemas, que depois foram publicados, numa antologia com outros três poetas italianos. Foi uma surpresa e uma grande alegria, pois gosto deste poeta. Ele não é muito amado em Perugia, a sua cidade natal. Era uma pessoa difícil, que escandalizou os bem pensantes daqui. Por isso, enquanto a Itália começava a reconhecer Sandro Penna como um dos maiores poetas italianos do Novecentos, Perugia continuava fazendo de conta que ele não era perugino. E até hoje é tabu este nome por aqui. Veja o destino dos poetas...
Eu gostaria muito de traduzi-lo, ou tentar traduzi-lo, para o português. Porque ele é denso e sintético ao máximo, com um lirismo luminoso e delicado, com um dor funda ecoando que nunca sai daquela levidade que lhe é própria. Ele pertence àquela tradição inaugurada por Ungaretti, embora não tenha nada de ungarettiano, a não ser a densidade e a economia expressiva que caracteriza a sua poesia.
Um outro poeta deste linha é Giorgio Caproni, outra minha grande paixão. É toda uma linha de poesia que se opõe ao lirismo mais tipicamente italiano, que vem desde Petrarca e que eu acho muito literário, não sei se me explico, muito distante do modo de se usar a língua. Em Caproni, existe uma contaminação entre língua culta e língua falada, às vezes entre o italiano e o dialeto, ou dialetos, que o poeta conhecia. Com estes poetas, Penna, Caproni, e outros dessa linha, a poesia se reaproxima da vida, entra na vida, e sai mais intensa, concreta, chega mais à alma, fala mais ao corpo também.

  1. Que diferenças e semelhanças você vê no ambiente universitário brasileiro e italiano?

Olha, acho que têm muitas afinidades, é sempre o mesmo mundo fechado. A Universidade italiana é, no entanto, mais tradicionalista, conservadora, o aluno não tem muito espaço, nem voz. Além disso, o professor que é ao mesmo tempo escritor não é bem visto na Universidade italiana. Que o digam poetas como Mario Luzi, que penaram não pouco para conseguir uma cadeira. E quem escreve, vive escondendo dos colegas os livros. É come se escrever fosse um impedimento. Ou você é crítico, ou é escritor, tem de escolher. Li, há alguns dias uma entrevista com o grande crítico italiano Carlo Bo, que está fazendo oitenta anos. Pois ele disse que a sua maior frustração é nunca ter conseguido ser escritor. Que ele era crítico por absoluta incapacidade de criar uma obra de arte sua, original. E confessou aquilo com muito sofrimento. Então, eu fico pensando se esta tentativa de excluir os poetas da universidade não seja uma espécie de vingança. Como a dizer, você já tem o seu fogo vital, deixa o resto para quem não o tem. Só que os poetas não sobrevivem de poesia, então buscam uma atividade próxima, que não os distancie muito da literatura. E muitos acabam mesmo é virando professores, ou críticos, além de poetas.
No Brasil, felizmente, acho que não existe essa espécie de preconceito para com os poetas e escritores. De fato, muitos estão nas universidades.

  1. Morando na Europa, que visão você tem dos problemas sociais, da questão da imigração, globalização, racismo ou choques culturais? Ao mesmo tempo, como vê o Brasil a partir daí?

Acho que a globalização teve, entre tanta coisa negativa, essa capacidade de unir os países em torno de alguns problemas comuns de grande emergência e urgência. Até há alguns anos atrás, o subdesenvolvimento era um problema da África, ou de uma parte da América, da Ásia. Hoje é um problema global. Ninguém mais pode dizer que o problema da miséria é local. Ninguém mais pode dizer que a Angola é culpada de ser o país misérrimo que é, com uma guerra infinita e cruel. Não se pode mais esconder que tudo é decidido nas altas esferas, que são uns poucos economistas que traçam a nossa vida, o nosso destino, que decidem para onde mandar o capital, onde investir, com frieza, sem se preocupar que a cada cifra podem corresponder tragédias, doenças, fome, uma vida implorada, suada. Os mecanismos estão bem claros hoje, essa é, por um lado, a vantagem da globalização (talvez a única): temos consciência dos mecanismos, estando no Brasil ou na Itália, não nos enganam mais. Agora, a diferença é entre uma criança que nasce numa favela de São Paulo, da Bahia, e um menino que nasce num bairro de Milão, Paris, Lisboa. Se você teve a infelicidade de nascer na favela, poucas serão as suas possibilidades. Existe um cinismo muito grande no mundo e ninguém está nem aí com isso, é evidente. Eu fico imaginando um Picasso, um Einstein na favela. Não teríamos o cubismo, não teríamos a teoria da relatividade. Isso parece não entrar na cabeça dos nossos políticos e governantes. Um pobre, uma pessoa que não tem condições que crescer como ser humano, é um problema de todos.
O Brasil, visto daqui, é, como disse, um país de cartão postal, um país inexistente na realidade. Mas existem muitos italianos que amam o Brasil e procuram ir além dessa aparência e ver o nosso país como ele realmente é. Os italianos gostam da nossa alegria, do nosso modo aberto de ser, da nossa hospitalidade, da nossa afetividade e sensibilidade à flor de pele. Eles também era assim, mas agora estão muito europeus. Talvez o sul da Itália, nem tanto, mas o resto já mudou bastante.

  1. Que lugar ou função você vê para a poesia no mundo de hoje?

É difícil dizer que função a poesia possa ter hoje. Acho que a função que sempre teve, de mostrar-nos o que não vemos, de fixar momentos, sentimentos, pessoas que o tempo carrega, dos quais não deixa nenhuma memória. Os históricos narram a vida dos grandes políticos, generais, dos homens que detém ou detiveram o poder. Os poetas falam de quem não entra na história, de quem vive o seu humilde dia-a-dia que parece nulo, sem fatos importantes, onde cada problema pesa, cada ferida sangra e dói. Se você perde o emprego, se você perde o trem, se você perde o filho, isso não interessa a ninguém. Interessa ao poeta, que observa, pensa, sente aquilo e, se tiver sorte, conseguirá fixar o momento, que parece sem valor, que ele sabe que interessa a poucos. Por isso a poesia hoje não tem mais um lugar na história, na sociedade. O poeta fala de coisas consideradas muitas vezes reles, do ponto de vista – claro - de uma história feita por, e para, os privilegiados da terra.
Mas para o poeta, tudo é matéria de poesia, como diziam Bandeira e Drummond. Até o meu calo, se for um calo significativo, se este calo me levar a um momento de epifania. Os homens aprendem grandes coisas às vezes das coisas aparentemente mais banais. A poesia não generaliza, não arredonda. Cada pessoa é única, cada ferida, cada sorriso, cada sonho é único. A poesia é o que de mais anti-globalização possa existir.

  1. Todo poeta é também um crítico. Que tipo de poesia lhe desagrada? Com a qual você tem afinidade?

Sim é um crítico, primeiro se si mesmo, e muito rigoroso. Depois, alguns poetas gostam também de escrever sobre outros poetas, como é o meu caso. Aliás, hoje muitos poetas são também críticos e professores universitários. Tenho escrito artigos sobre poetas muito diferentes entre eles, como Cláudio Manuel da Costa, que é um poeta do qual gosto muito, Murilo Mendes, Drummond, Bandeira, Raul Bopp, Oswald de Andrade, João Cabral, Lêdo Ivo. Ou poetas portugueses, como Sophia de Mello Breyner, Jorge de Sena, Eugênio de Andrade, Alexandre O’Neill, António Gedeão, ou angolanos, como Ruy Duarte, Costa Andrade, Manuel Rui, ou italianos, como Mario Luzi, Giorgio Caproni, Franco Loi, Alda Merini, etc. São todos poetas com os quais tenho, creio, bastante afinidade. E são bem diferentes entre eles, como pode observar. Não tenho um tipo específico de poesia que me agrada, gosto de toda boa poesia. E leio muito, mas hoje está cada vez mais difícil achar um poeta que provoque aquela emoção que senti lendo alguns poetas pela primeira vez, como Ungaretti, ou Pessoa. Não é que não existam mais grandes poetas, é que ficamos cada vez mais exigentes. Hoje tudo ou quase tudo já foi dito. Não é fácil inventar alguma coisa, renovar, inovar. O poeta de hoje tem diante de si uma longa tradição de grandes nomes, de grandes inventores. Então, como ter certeza de que você não está só repetindo? Não vamos, no entanto, parar de fazer poesia porque tudo parece já ter sido dito. Quem pode garantir que não se encontre ainda alguma pérola para dar a um mundo tão sem mitos, tão sem sonhos... A gente precisa continuar a procurar.

 Donizete Galvão, 2002

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(by Claudio Maccherani )