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A
poesia é um estado de transe
a
poesia é um estado de transe
a poesia é um estado com Deus
quando tem hora em que Deus nos visita
a casa se enche de tudo quanto
Deus carrega consigo no seu útero |
Dentro
só dentro me placo
só no denso posso aquietar-me
ando pelas ruas como alguém
que perdeu um porto
em qualquer lugar que esteja
estou como tocada por uma
vontade de penetrar no osso
de tudo o que Deus gerou |
Tem
palavras
tem palavras que têm cicatrizes
a palavra apego, a palavra parto
a palavra tempo
dentro elas são de madeira
dentro elas se impregnam
quando a chuva bate na janela
penetra os poros |
A
massa
o
pai conhece a casa
conhece cada degrau e tábua de assoalho
cada tijolo que ele mesmo assentou, cada
gemido de tramelas, cada piado de alma
que ele deixou habitar entre os espaços
e pregas da massa de concreto |
O
coração das sementes
menina
eu penetrava no coração das sementes
e olhava o mundo por baixo das raízes
penetrava nos ramos altos das mangueiras
por dentro da polpa de um fruto maduro
penetrava em tudo o que é coisa
que gostava de ser visitada
por minha mão e minha
alma de bicho |
El
corazón de las semillas
de
niña yo penetraba en el corazón de las semillas
y miraba el mundo por abajo de las raíces
penetraba en las ramas altas de los mangos
dentro de la pulpa de un fruto maduro
penetraba en toda cosa
a la que le gustaba ser visitada
por mi mano y mi
alma de bicho |
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(versione
in spagnolo di Marta Spagnuolo) |
O transe de que falam os poemas de
Vera Lúcia de Oliveira não é o da tradicional ascese religiosa, ou de uma
fuga pacificadora da realidade, mas, ao contrário, nasce da relação intensa
com o vivido e se consolida no ”olhar por baixo das raízes”. Essa visão
atenta para os detalhes do cotidiano, para o que se esconde nas dobras da
linguagem, para o interdito nas relações humanas, revela as sutilezas de
uma dicção arrojada e questionadora das asperezas que nos prendem às circunstâncias do tempo histórico,
tantas vezes brutal e mesquinho. A procura da palavra ”fendida no cerne/ do seu pisar” e que ”arde dentro da boca” nos arrebata para a materialidade inegociável de ser e estar aqui, participando de cada mínima experiência como portadora de alguma epifania oculta. O poema, muitas vezes, encarna o processo desvelador desse universo de sentidos que o moto
contínuo do real torna opaco, mascara e dilui. Por essa razão, o gesto do poeta
pode ser, entre outras possibilidades, ”entrar na polpa do fruto maduro”, ou
reordenar ”o mundo da casa/ à nossa imagem e solidão”. Espécie
de liturgia mundana, os poemas de Vera Lúcia desritualizam a ideia de
sagrado e projetam uma figura divina que dialoga com a dor e com as
imperfeições que nos conformam, mesmo quando parecemos seguros e no
controle da situação. |
Vera (foto Claudio Maccherani,
1997)
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Não há condescendência para a imagem de Deus,
nem salvação que não parta da extrema consciência da fragilidade. Na
visão do poeta, pode ser o transe que ”Deus carrega consigo em seu útero”
- fruto de tudo que se acumula ao longo da história da cada um. A divindade
não sacia a fome de conhecimento, mas é parte dela. Os
poemas interrogam até o sentimento amoroso, para muitos o reduto de algo
intocado, considerando-o ”a maior causa de morte/ da humanidade”.
Paradoxalmente, atração e repulsa se completam numa correlação de forças
que nos arrastam para o mais íntimo de nossa humanidade, como a graça e
o ódio. A
poesia não tem, e não deve ter, respostas para nossas angústias; sua
função é a de investigar tudo que escapa ao óbvio, ao já consagrado,
ao que tentamos simplificar por covardia ou fraqueza. Vera Lúcia sabe que
as palavras ”têm cicatrizes” e que lhe cabe estudá-las sem trégua
e pacientemente, porque estão ali as marcas do que somos e do que
imaginamos ser, nos limites do dizível. Reynaldo
Damazio |
Recensioni:
Ronaldo Cagiano, 20/09/2010; Rudinei
Borges, in "Coluna Crítica",
rivista web, 14/11/2010 e in "Primeiro Esboço",
articoli web, 14/11/2010.
Recensioni
nel sito >>
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(by
Claudio Maccherani )
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