"No coração da
boca" - Vera Lúcia de Oliveira, 2006
À minha mãe
Aurive
(non
più online...)
"Beatriz" - Chico Buarque
No coração da boca
Vera Lúcia de Oliveira
(Maccherani)
Escrituras Editora, São Paulo, 2006
ISBN 85-7531-202-2, 13x20 cm,
80 pag
foto di copertina di Claudio Maccherani
rielaborazione grafica di Elisa M.B.Torres
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quando o deixei
estava de pijama
perdia-se num mundo branco e mudo
disse pai a gente volta no domingo
olhou-me quedo não respondeu
não disse absolutamente nada
lettura di "quando o deixei..."(Vera Lúcia de Oliveira)
posso lavar, limpar a casa toda
deixar num brilho a louça
arear as panelas a moça não
vê que mão calejada tenho
nasci trabalhando estou
acostumada a lustrar a casa
das patroas
lettura di "posso lavar..."(Vera Lúcia de Oliveira)
disse que a dona Cota tinha começado
a falar com os mortos
chamava o pai, falava com a mãe
disse que era assim os mortos
é que vinham buscar os vivos
quando a gente já é um pássaro
e se prepara para o vôo
mas ainda não sabe
se vai voar
dormia no ônibus
a cada parada o corpo se sacudia
ele abria os olhos via a gente que entrava
via a gente que saía pensava fosse
outro aquela moça aquele rapaz
tinha outra história começava de novo
morava noutro canto da cidade
cochilava com aquele sonho
de ser qualquer outra pessoa do mundo
menos ele mesmo
no portão o homem se esforçava
para se manter em pé
a patroa não daria uma ajudinha
um prato de comida serve
são três dias que não como ando sumido pelo mundo
quem me procura não acha estou virando passarinho
dei até para sobrevoar as casas e ver o mundo
todo de lá de cima
lettura di "
no portão..." (Vera Lúcia de Oliveira)
o beijueiro passava de bicicleta
um velhinho raquítico que falava pouco
abria
a lata, tirava o biju quentinho
guardava a moeda no bolso
subia na bicicleta e saía pedalando
com seus bijus pelo mundo
lettura di "o beijueiro..."
(Vera Lúcia de Oliveira)
Entrar
no mundo poético de Vera Lúcia de Oliveira é descobrir que ela sente
com delicadeza e profundidade. No cerne da palavra, pulsa o coração do
poeta cheio de compaixão e de ternura pelas vidas minúsculas. Seu ouvido
está sempre atento para registrar aquilo que está prestes a perecer. As
pequenas histórias, as recordações da infância e as falas do
quotidiano são captadas, elaboradas e ganham expressividade máxima em
versos concisos, límpidos e despojados.
A
sua poesia nunca soa estridente, é sempre dita a sotto voce. Ela
abre mão de adornos que possam desviar a atenção, para concentrar-se no
que há de mais essencial: o lugar do ser humano em um mundo em que parece
não haver mais lugar para ele.
"arcoiris", foto da capa de Claudio Maccherani,
1990
Em
No coração da boca,Vera Lúcia traça, com rigor e sutileza, uma
crônica bem arquitetada das vidas arruinadas, dos sobreviventes, dos
desamparados pela sorte. São retratos 3X4, fragmentos desse desastre
social brasileiro. Fala dessa gente que “deseja tanta coisa”, mas
“tudo vai passando por cima”. Gente que deseja o que não pode desejar.
Coerente com seu projeto, foge da idealização da infância ou da vida do
interior. Mesmo nos momentos de alegria, há uma dor calada nas
entrelinhas. Uma dor sempre pressentida naqueles poemas que retratam a
infância.
Vera
Lúcia de Oliveira ouve as vozes provindas das coisas. Escuta essas falas
sussurradas como um gemido. Daí o uso do ready-made para captar no
particular o que é uma representação do social. Este momento raro em
que o poeta, com toda humildade, se transforma em fio condutor de outras
falas está em suas mãos neste belo livro que a gente lê com uma
“apertação na alma”. Sempre resta uma mínima esperança “no fundo
do pavio/ainda capaz/de acender/e de incendiar”. Esta é a poesia de
Vera.
A
evidência de que a poesia é um sortilégio organizado está aninhada,
como um pássaro, neste No coração da boca, de Vera Lúcia de
Oliveira. O título sugere
uma certa premência ou urgência de ser e expressar-se: uma intenção até
sôfrega de confessar-se ou o instante de uma respiração suspensa, após
um susto ou uma corrida. E na verdade ele se ajusta plenamente a esse
lirismo que, mesmo sendo uma magia vocabular, recusa o fulgor e o
esplendor, preferindo o caminho dos monólogos desolados que registram o
desamparo e a colisão de seres miúdos, de pequenas vidas aflitas e
ambientes sufocantes. É uma poesia da opacidade do mundo, uma dicção em
surdina e em sussurro. O tecido poético usado por Vera Lúcia de Oliveira
não é uma tapeçaria, antes uma estopa que indica a mais pobre
materialidade da vida.
A poesia é construção, desconstrução e reconstrução. Vera Lúcia de
Oliveira constrói, desconstrói e reconstrói: tece, destece e retece o
tecido da vida. A sua delicada matéria poética se enraíza no que a
existência cotidiana tem de mais oculto ou esquivo. Nenhuma transcendência
ampara os seus versos – os versos de um lirismo coagulado que transgride
conceituadas medidas métricas para, numa desconstrução aparente, impor
uma verdade que punge e incomoda.
Esta poesia altamente substantiva, e na qual a ênfase está desterrada e
abolida, é uma confidência fragmentária, uma confissão emaranhada.
Através do emascaramento sutil, Vera Lúcia de Oliveira se confessa e se
esconde. E, no outro lado, do rio ou da terra, ela confessa outros seres e
faz ouvir outras vozes. E, com a modéstia verbal que é a sua virtude,
celebra a penúria do mundo e o desamparo dos seres.
Nesta poesia sem maiúsculas, sem vírgulas e sem pontos finais - nesta
poesia contínua e descontínua que se deseja nua e desprovida de encantos
e ornatos - a noite escura da alma e do verso é iluminada por uma
constelação.
Lêdo
Ivo, Rio de Janeiro, outubro 2003
Recensioni:;
Marco Agueiva, na Revista da UBE "O Escritor"
n.118, aprile 2008; Osvaldo
Duarte, 30/06/2008.