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atravessar
cada corpo
tocar o espesso do osso
que é nosso e do outro
estar onde se padece
com fúria de paciência
estar onde se lavra uma horta
onde se lava uma roupa
onde se reza e se cura uma dor
estar onde se nasce e onde se fenece
e ser nesse morar e estar nesse morrer
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há
tardes que não se despedem
apenas encostam a porta
nessas cabem os rastros
de todo bicho que ronda
nessas tem lugar um olho sempre se indo
sem nunca poder chorar
nessas há um rumor de chuva
se desmanchando na terra em torrões
que desabam em desfiladeiro
levando tudo consigo |
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um
cão late no sonho e me chama para fora
e eu levo o cão para dentro e nele emendo
outro cão de outro tempo que me lambe o rosto
e me roça o corpo como se soubesse
desde sempre quem sou eu e quem é ele |
a
mãe é um sol ossudo que
perde
os pés na sacada de casa
um
telefone rasga o rosto
do
relógio e retira um dos
ponteiros |
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voa
dentro de si
agora que ficou velha
rasante aos muros de suas
vértebras que se quebram
como farinha branca
agora
que ficou velha
podem roubar-lhe casa
que a casa é dentro
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nasci
de uma aranha
que me fisgou por dentro
com seu fio de visgo
que defende a greta
aberta na madeira
o
brilho felpudo
enlaçou meu pulso
e
aprendi ali
que toda beleza
tem custo |
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toda
ausência
é um cão
que gane
sem despedaçar
o silêncio |
entrou
em casa
chutando a sombra
e se fechou no banheiro
encostou o rosto no frio
ferido do espelho
e foi comendo a noite
sem fazer ruído |
O
grande desafio da poesia é alcançar a transcendência, ou seja, falar a
partir de um lugar e de uma época específicos para leitores de espaços e
tempos singulares. Todos buscam, perseguem essa equação, mas poucos são
aqueles que a alcançam, pois não basta a sensibilidade para escolher os
temas, nem a técnica para formatá-los. A poesia, a grande poesia, aquela
que permanece, ilumina espaços, capta nuanças e detalhes, onde outros
apenas enxergam escuridão; dá materialidade ao inefável por meio de
rigorosas construções formais. Vera Lúcia de Oliveira inscreve seu nome
entre os grandes poetas brasileiros pela maneira como consegue ser ao mesmo
tempo contemporânea e clássica, tanto na forma como no conteúdo.
Clássica
e contemporânea, assim é a grande poesia de Vera Lúcia de Oliveira.
Luiz
Ruffato
[dal
risvolto di copertina]
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Assis,
SP, Brasil, 2017 (foto di Vera Lúcia de Oliveira)
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Postfazione
Toda
vida tem custo
Minha
língua roça o mundo
cria um espaço de negociação "onde se pechincha/ o que sobra da
vida". O leitor está convocado a entrar nesse espaço e negociar com
seus próprios resíduos, suas memórias, seus sentimentos, sua experiência
de perda. Está igualmente convocado a acompanhar um percurso dolorido de
negociação do sujeito lírico com o tempo e com o sentido do existir, os
quais exibem no plano da poesia seus avessos, suas vísceras, e o custo da
inquestionável beleza deste livro.
A
poética que aqui se apresenta é densa, madura, delicada, lúcida,
rigorosa, empática e sutil. A poeta permanece fiel a um padrão
estrutural que domina plenamente, o qual propicia considerável voltagem
expressiva aos versos. Compõem a obra textos curtos, que se valem de uma
sintaxe e de um léxico familiar, de um ritmo e de uma imagética
extremamente regulares, de variância absolutamente controlada pelo
talento autora. O resultado é que Vera Lúcia de Oliveira consegue
extrair um máximo de possibilidades poéticas de um mínimo de recursos
poéticos. (...)
Os
poemas de Minha língua roça o
mundo recuperam alguns processos básicos da poesia de Vera Lúcia de
Oliveira, observados também em livros anteriores, como O músculo amargo do mundo e
Ditelo a mia madre. Mas aqui
estes processos estão, por assim dizer, radicalizados. Um deles é a
obstinação da poeta em usar o olhar lírico para unir o mínimo e a
amplidão, para entranhar na fresta a vastidão. Veja-se, por exemplo, o
poema "há tardes que não se despedem...". É o que poderíamos
reconhecer como uma ânsia por desindividualizar o olhar e a voz, uma
busca por destacar o imediato e elevá-lo ao plano do universal, onde é
possível reconhecer, na experiência de dor do outro, a própria experiência
de sofrimento; e vice-versa.
Outro
processo básico de sua poesia que aqui está ativado de modo especial
reside na maneira muito hábil como a voz lírica articula as distâncias
e as proximidades entre o eu que fala e o outro, quase sempre distante no
tempo, no espaço ou na sociedade. Essa voz que fala é sobretudo "empática",
no sentido de que ela é capaz de adentrar a perspectiva do outro, o que
às vezes faz com que o eu melhor se observe e outras vezes faz com que o
outro ausente ganhe voz e reconhecimento. (...)
Há,
pois, um incontestável destino de identificação no movimento poético
da voz lírica, que busca pares em desamparo, busca irmãos no desespero e
na delicadeza. É o que acontece quando vemos sua figura quase desdobrada
em cão ("levo o cão pra dentro") ou em andorinha (“voa
dentro de si”), numa proximidade que se diria franciscana com os animais,
que também cantam e que também sofrem a dor da existência.
Mas,
se pudermos amplificar essa noção de complexo direcionamento poético à
alteridade, verificaremos que a voz lírica da poesia de Vera Lúcia de
Oliveira está empenhada em dirigir-se à ausência. É a ausência o
grande e espesso núcleo semântico de Minha
língua roça o mundo. Para fazer com que o ausente seja figurado, a
autora recorre a dois procedimentos imagéticos fundamentais, que têm o
condão de sublinhar delicadamente o caráter residual do que passou, do
que não é mais, do que é perda, muito embora não tenha sucumbido
completamente ao deperecimento. Expressados em termos de parcelas ou resíduos,
o corpo e a casa têm papel fundamental nesse esquadro poético de ruína,
finitude, morte e ausência. (...)
Aí
está, a meu ver, indicado o custo da beleza. Num dos poemas mais belos do
livro, a autora enuncia algo central para a compreensão de Minha língua roça o mundo: “e aprendi ali/ que toda beleza/ tem
custo”. Ora, podemos interpretar esse custo, tendo em vista que o livro
é um manso e delicado lamento pela falta, como algo vinculado de modo
muito profundo a uma outra ausência linguística: a da palavra "saudade".
Palavra unicamente encontrada em português, sente-se forte sua ausência
num livro que trata de perdas. Entre tantas outras coisas, o livro, também
nas ausências, dirá ao leitor: a
saudade é o custo da beleza. E o custo, a rigor, é sempre o inominável,
o impossível de se dizer. Mas podemos, então, acrescentar: além de um
custo, a beleza e a poesia têm um valor. Extraído do desamparo, da
nostalgia, esse valor ajuda a vida a continuar, agora elevada à plenitude
da forma-poema, onde vale pechinchar "o que sobra da vida".
Nesse sentido, a poesia também é uma resposta, um desrespeito sadio e
humano, uma resistência a todas as formas de morte e de finitude.
Alexandre
Pilati |
Recensioni:
Carlos Machado,
"Alguma poesia", poesia.net n.418 ano 17, 13/03/2019; Daisa
Rossetto, "Cronicas, Lugares e Café", 13/02/2019
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Claudio Maccherani )
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