A
POESIA DE VERA LÚCIA DE OLIVEIRA
A
visão (de mundo) da poeta Vera Lúcia é um olhar de mulher adulta,
acostumada com o mundo, mas o seu olhar é o da menina interiorana, que
se espanta. Sua poesia é feita de uma substantivada realidade, dura, sem
misericórdia, principalmente consigo mesma. Mas a menina socorre, dá-lhe
a mão, puxa-a de situações sombrias e a coloca diante da luz. Diante da
luz das coisas do mundo, que, muitas vezes, ofusca; outras, apenas
esclarece. E quando esclarece, abre a porta da poesia. Que se não se quer
clara, como um enunciado matemático, mas se apresenta como a reflexão da
imagem na retina de uma águia. Ave que paira sobre a paisagem com seus
olhos e garras aduncas e vai direto ao que interessa: a carne intensa da
vida. E, neste sobrevoo, troca o bico recurvo do falcão pelo fino
estilete do colibri. O beija-flor vence a ave de rapina. Não é esta, de
certa forma, a tarefa de todo o poeta consciente? Que, no voo sobre a
cidade dos homens, vê com suas pupilas aduncas:
a
cidade e
o
corpo branco
de
cidade-osso de cidade-cerne de cidade-lúcida
no
moer dos rastros no pilar de voos
em
que os corpos bastam
A
ideia da poesia como um voo sobre o mundo, o destino, a vida, ora como uma
ave/águia, ora como uma ave/sabiá, é uma imagem que salta aos sentidos
do leitor atento:
ia
como um pássaro de costas carregando no ventre o
futuro
ia
até onde os cães lambiam as feridas porque no escuro aprenderam a
consolação
[da
saliva e
o
apego dos membros ia porque atrás tinha um esquecimento
[de
carne batida e
não supurada pelo medo pelas portas
[pelas
pegadas no tijolo porque precisava gerar nas entranhas
[a
razão do seu voo
A
poesia de Vera Lúcia é de uma razão advinda dos pássaros ou dos deuses:
sem misericórdia aparente. Não fosse a menina que de dentro a co/move.
Esta menina essencial muda tudo, aceita o mundo como ele é, mas procura o
sentido – que pode ser a pura beleza encontrada no cotidiano, ou, quem
sabe, Deus:
a
poesia é
um estado de transe a
poesia é
um estado com Deus
quando
tem hora em que Deus nos visita a
casa se enche de tudo quanto
Deus
carrega consigo no seu útero
A
visita deste deus, ou a epifania, em geral, na poesia de Vera Lúcia não
é grandiloquente, nem se traduz em adjetivações desnecessárias, mas se
liga diretamente ao cotidiano, às coisas, ao mundo palpável e próximo
– do qual nunca se espera nada, mas repentinamente se demonstra em forma
de palavra/manifesto/poema: nós, os seres, existimos, vocês não estão
vendo? As coisas se manifestam, gritam, falam, declaram sua existência no
poema:
ouvia
vozes
dizia
que quando a
pessoa saía as coisas ficavam gemendo a ausência
como um cão
que
não podia viver sem a
ternura do seu dono
Mas
há uma outra vertente na poesia de Vera Lúcia que nos mergulha num
torvelinho de sensações, ideias, pesadelos, imagens claustrofóbicas:
acordou
de noite e
disse que sufocava
que
não conseguia respirar que uma angústia dentro rasgava o
pulmão as vértebras
não
adiantava aquele remédio aquele leito ela sabia que na hora chegada
do
dia que deus tinha determinado dentro da grande língua da terra
ela teria que
entrar
Neste
poema, temos uma chave da poesia da Vera Lúcia de Oliveira: o terror e a
beleza da vida e da morte. E, como consequência, todo este derramar-se
contido para dentro do horror da existência. Parece que Vera tem seus antídotos
nas palavras:
tem
palavras que têm cicatrizes a palavra
apego, a palavra
parto a palavra
tempo
dentro
elas são de madeira dentro elas se impregnam quando a
chuva bate na janela penetra os poros
A
palavra salva, ou, pelo menos, manifesta nas coisas do cotidiano e
do mundo a consciência humana, que observa, pensa, e cria. O humano se
dimensiona na categoria da palavra, que é como um parto, um nascimento.
Cada vez que o poeta se manifesta, uma realidade possível acontece: é o
poema.
E
onde está a menina de quem vínhamos falando desde o início da leitura
dos poemas? A que abre veredas de voos de esperança diante da dura
realidade? Onde a poeta encontra a unidade entre o que desaparece na
voragem do tempo e o que permanece na imagem/poema? Aqui, eu a encontro:
menina
eu
penetrava
no
coração
das
sementes
e
olhava
o
mundo
por
baixo
das
raízes
penetrava
nos
ramos
altos
das
mangueiras
por
dentro
da
polpa
de
um fruto
maduro
penetrava
em
tudo
o
que
é
coisa
que
gostava
de
ser
visitada
por
minha
mão
e
minha
alma
de
bicho
José
Eduardo Degrazia